segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ITALIANOS


O EQUILÍBRIO DO OLHAR1

Valerio Magrelli nasceu em Roma, em1957. Formou-se em Filosofia e é professor de Literatura Francesa na Universidade de Cassino. Traduziu Paul Valéry e Verlaine. Faz parte dos "novíssimos" poetas de Itália. Com uma obra relativamente pequena, mas respeitada por muitos críticos. Estreou-se com Ora Serrata Retinae2, seguindo-se Nature e Venature3, Esercizi di Tiptologia4. Entre as obras publicadas até o momento, foi com o livro de estreia que conseguiu obter sucesso junto do público e da crítica, não só pelas edições esgotadas mas porque é neste volume que o poeta revela a sua palavra inaugural.
A ideia de visão que conceptualiza - Ora Serrata etinae - surge irmanada pela graduação estereoscópica diante do mundo e dos objetos. Magrelli parece graduar o movimento de focagem e desfocagem do olhar sobre as coisas:

"Gli occhi si consumano come matite
si consumano come matite
e la será disegnano sul cervello
figure appena sgrossate e confuse.
Le immagini oscilano e il tratto si fa incerto,
Gli oggetti si nascondono:
È come se parlassero per enigmi continui
Ed ogni sguardo obbligasse
la mente a tradurre"5

Sujeito e objeto armam a estrutura do discurso circular. Muito mais do que imagens, o poeta quer extrair o "ADN" da poesia através da alegorização, da pesquisa rigorosa, daí a consequente reflexão metapopética:

"Se il cieli à la mano
il mare la pagina,
la pena fiamma e batessimo
percorso dalla folgore, sentiero
che si perde nell'acqua"6

A sua poesia galga uma dimensão inusitada, como afirmou o autor:
" O problema para mim é procurar um léxico fora da literatura, recuperar um léxico que funcione. Penso na linguagem técnica da navegação, nos termos da álgebra, no rigor dos enunciados filosóficos e teológicos, na cadência de certa prosa científica".
A "mecânica uniforme" apresenta-se formalmente definida, o racionalismo com que pactua é retirado daquilo que o poeta acredita ser essencial: Berkeley e Montaigne, Valéry e o trabalho artesanal, a álgebra e os termos técnicos7, a exemplo do Montale que usou um vocabulário similar. Tais elementos funcionam como vias para celebrar uma maneira de comunicar e enfrentar os desafios da linguagem poética. O poeta atinge os objetivos que pretende ao tematizar o seu próprio ofício motivado pelo equilíbrio do olhar:

"Preparar la parola con cura, perché arrivi alla sua sponda
scivolando sommesa come una barca,
mentre la scia del pensiero
ne disegna la curva"8

O emprego dos termos científicos referentes à anatomia do olho que subdividem Ora Serrata Retinae são aplicados noutras circunstâncias, o mecanismo conceptual é rebatizado. No livro Esercizi di Tiptologia, Magrelli introduz o jogo linguístico entre o nome de um carro da ex-RDA que em alemão significa "satélite" e os fatos históricos que ocorreram com a derrocada do muro que dividia a Alemanha:

"Satélites de um sistema solar que se desfaz,
de um núcleo que decai, liberta partículas
e perde as suas pérolas dos fios orbitais, bagos
de um granizo
e brilham sobre os asfaltos ocidentais,
TRABANT rosa, beige, verde
(...)
TRABS
de uma classe fóssil e estilizada,
caixinhas de lata onde aperta
uma inquieta, doce burguesia comunista, achados
minerais, carro do Mickey
que fugis do vosso flautista assassino,
bem vindos a Hamelin, RFA!"9

Como tradutor, Magrelli verteu para a sua língua a obra de Paul Valéry, o investigador obsessivo do fenômeno literário. Não seria um erro afirmar que a obra em progresso deste italiano reproduz com apurada eficácia, o que o autor de Monsieur Teste dizia ser a "festa do intelecto", ou seja, a poesia.
1 Texto que anunciava a vinda de Valerio Magrelli para o encontro "Poesia em Lisboa", que decorreu entre 21 e 25 de amio de 1996, na Casa Fernando Pessoa; publicado no jornal Expresso.
2 Ora Serrata Retinae, Roma, Feltrinelli, 1980.
3 Nature e Venature, MOndadori, 1987.
4 Esercizi de Tiptologia, Mondadori, 1992.
5 "os olhos gastam-se como lápis/ e pela noite desenham no cérebro/ figuras apenas esboçadas e confusas./ As imagens estremecem e os traços tornam-se incertos,/ os objetos desaparecem"
6 "Se o céu é a mão/ o mar a página,/ a caneta chama e baptismo,/ traçado do relâmpago, vereda/ que se perde na água" (in A espinha do P, trad. Maria Carlos Loureiro).
7 Ver a este propósito introdução da versão castelhana de Ora Serrata Retinae, trad. Carmen Romero, Madrid, 1989.
8 "Preparar a palavra com cuidado para atingir a margem/deslizando como um barco secreto/ enquanto desenha uma elipse na estela do pensamento".
9 A Espinha do P, Quetzal, 1993.

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