sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
COM A MORTE NOS OLHOS1
Na sobrecapa do volume agora publicado, a editora resolveu inserir a reprodução do manuscrito de "Os mares do Sul". Pavese escreveu o poema aos 22 anos, foi com este texto que inaugurou outra via para a poesia italiana, dominada naquela altura pelo hermetismo. A primeira edição de Lavorare Stanca veio à luz em 1936. Muitos dos poemas foram escritos durante a prisão política de Pavese, na Calábria. A censura fascista eliminara vários poemas, segundo os responsáveis afirmaram, devido ao excesso de obscenidade.
Na verdade o código poético do poeta italiano era atravessado por um descritivismo lírico. os seres à margem da sociedade - mendigos, prostitutas e trabalhadores - são guindados do limbo onde se encontram, e evocados através da percepção melancólica:
"Muitas vezes regressa no lento despertar
aquele sabor decomposto de flores distantes
e de estábulo e de sol. Não há homem que saiba
a subtil carícia daquela acre recordação.
Não há homem que veja, além do corpo estendido,
aquela infância passada numa ânsia inocente."2
A poesia empreende um regresso à realidade consciente da instrumentalização coloquial. É necessário ter em conta que a textura narrativa do poema suporta o discurso fincado no quotidiano:
"Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris a fecharem-se
em vão sobre os alimentos"3
Pavese cria uma ambiência para os seus poemas, mantém uma tensão envolvente, um distanciamento, a frustração amorosa e uma obscura interpretação do institnto sexual:
"Atónito com o mundo, veio-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir os discursos dos homens e das mulheres
sem saber que responder não é grande alegria.
Mas também essa idade passou: já não estou só
e se não sei responder, passo bem sem isso"4
O poeta trabalhou na editora Einaudi, onde fez várias traduções de autores americanos, reconhecidas como obras-primas. Após o seu suicídio, a figura escolhida para o substituir foi Italo Calvino. No volume Poesie Edite e Inedite, de 1962, encontramos 29 textos recuperados por Calvino entre os papéis deixados pelo poeta. Os textos demarcam uma nova etapa. Foram escritos nom período que se seguiu à prisão, quando a plasticidade que havia mantido na sua poesia entra em crise - o testemunho surge no diário Ofício de Viver5.
A "poesia-relato" de Pavese intenta a busca de uma expressividade coloquial que o distingue entre os contemporâneos. Pavese se distancia do hermetismo mediterrânico de Eugenio Montale, da concisão de Giuseppe Ungaretti e do lirismo de Umberto Saba, ou da poética de protesto de Salvatore Quasimodo. O confessionalismo sentido desta poesia é ritmado pelos versos livres, usualmente de 13 sílabas.
Cesare Pavese é um autor conhecido do público português, os seus romances obtiveram muitas versões nos anos 60. Esta é a segunda tradução da sua poesia a sair em Portugal6.
A versão competente a que agora temos acesso dá-nos a conhecer a sua obra poética, e preenche um pouco a lacuna que há sobre a poesia italiana do século XX - e Pavese é sem dúvida um dos picos.
A 27 de agosto de 1950, num hotel de Turim, ele encarou finalmente o olhar fatídico da morte:
"Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos."7
1 Trabalhar Cansa, tradução e introdução de Carlos Leite, Livros Cotovia, 1997; publicado no jornal Expresso.
2 Op. Cit., 103
3 idem, p. 195
4 ibidem, p. 33
5 Ofício de Viver, tradução de Margarida Periquito, Lx, Relógio D'Água, 2004.
6 O Vício Absurdo, trad. Rui Caeiro, Lx, & Etc, 1990.
7 op. , cit., 351.
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