quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

FRANCESES


A RESISTÊNCIA POÉTICA DE RENÉ CHAR1

Ele não foi um homem público, nem teve a militância do seu amigo Albert Camus, mas comprometeu-se com várias causas, demonstrando uma atitude moral inquebrantável. Combateu os nazis durante A segunda Guerra Mundial - e isso não impediu que nos anos 60 se tornasse amigo de Martin Heidegger; depois converteu-se num activista antinuclear, apoiando os movimentos contra os projetos para a região onde nascera - L'Isle-sur-Sorgue -, e assinou manifestos contra a geurra na Argélia. Esta conduta nunca interferiu na sua poesia, mantendo a fidelidade absoluta à palavra poética. Foi assim o poeta René Char, que nasceu em 1907 e faleceu a 17 de fevereiro de 1988.
Descoberto por Paul Eluard, em 1929, o jovem poeta chega a Paris e estabelece amizade com os surrealistas, publicando, em 1930, Ralentir Travaux2, em parceria com Eluard e André Breton. Depois distancia-se do grupo e cumpre uma independência que se consolidou nos livros publicados posteriormente. Furor e Mistério é um dos momentos centrais da sua obra. Escrito em 1938/47 inclui, entre outros, Folhas de Hipno, obra considerada por muitos críticos como um dos testemunhos seminais da barbárie deflagrada pela guerra - Paul Celan traduziu-a integralmente para o alemão -, quando Char comandou um grupo de resistentes sob o "nom de guerre" de capitão Alexandre.
Hipno - o Sonho - percorre o mundo, anestesiando o sono dos homens; era irmão de Tânato - a Morte - e filho da Noite e de Hérebo - a escuridão, o inferno. Char retoma essa figura para concitar o diálogo entre a realidade devastada pela guerra e a visão interior. O discurso é orientado pela presença aforismática, o seu timbre escava um sentido para além das possibilidades; as imagens apresentam-se com percepções inovadoras.
A subjectividade metalinguística e a diversidade imagética canalizam os seus temas usuais: a solidão, o movimento das coisas, a morte e a própria linguagem no seu estado de aferição da realidade. Char aspira ao adensamento dos sentidos para irradiar na linguagem uma espécie de reflexão expansiva, de irrupção súbita da sensorialidade.
São muitos os referenciais poéticos captados pelo autor, mas - e aqui concordo com Jean-Pierre Richard - o que tende a intervir na sua obra com frequência é tanto a menção a Georges de La Tour como a poesia de Hölderlin e Rimbaud e a filosofia dos pré-socráticos. O poeta molda uma poética em diálogo com pintores - Giacometti, Matisse, Picasso, Vieira da Silva -, e músicos como Pierre Boulez. Tais pressupostos definiram as fronteiras desta poesia, cujo limite fixa o sentido num arcabouço difícil de penetrar.

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Dizia Albert Camus, no texto escrito para a edição alemã da poesia de Char, "Je tiens René Char pour notre grand poète vivant et Fureur et Mystère pour ce que la poésie française vous a donné de plus surprenant depuis Iluminations et Alcools". Não há dúvida de que Char representa a síntese tumultuosa daqueles três autores que constituem uma espécie de "triângulo das Bermudas" da poesia francesa, ou seja, Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.
A sua poesia circula num terreno dividido por múltiplos sentidos, acepções e interrogações. Para René Char, a poesia devia influir sob a pressão do dizer, com a linguagem a "pulverizar" o real, reintroduzindo-o através de uma escala medida pelo hermetismo libertador e pela turbulência imagética. O poeta adensa a expressão à medida que a sua ataraxia violenta revela a "serenidade crispada". Homem da realidade plena, poeta do "presente perpétuo", Char estava atento aos acontecimentos do mundo. A comunicação poética mostra-se tangível à incidência da reordenação do real, o mundo emerge desta poesia envolto em enigma:

"Mas que roda no coração da criança expectante girava mais depressa, com mais
força
que a do moinho no seu incêndio branco?3

Contra os atributos da linguagem artificiosa, a poesia de Char assume o pendor intransitivo para regular uma topologia do poema. A sua obra converge para a inquirição intermitente;

"Nascido do apelo do devir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se
do seu poço
de lama e estrelas, testemunhará, quase em silêncio, que nada havia nele
que
de verdade
não existisse noutro lado, nesse mundo rebelde e solitário das contradições"4

Do verbo ao astro, do desenho rupestre à visão fascinante de um pedaço de sílex, a poética de Char sobrevive entre a transparência e a densidade:

"Qual canto do torcaz quando a tempestade espreita - o ar
polvilha-se de chuva, de sol fantasmagórico -, eu acordo
lavado, derreto ao elevar-me; vindimo o céu noviço"5

Após a cisão com os surrealistas, Char amadureceu a voz, as marcas iniciais fragmentaram-se e apossou-se de outra forma de apreender a palavra. A inserção aforismática ganha espaço e o vocabulário torna-se permeável à ilustração resignada do horror. A poesia deste "transparente irredutível" desloca-se em direção ao intemporal; a palavra celebra o indizível, as imagens intransmissíveis.
René Char foi fiel aos seus princípios. A solidão, a humildade e a entrega total à obra não se revestiram de simples ornamentos de conduta. Viveu na pequena aldeia provençal que amou até o fim. Ainda teve tempo de casar com Marie-Claude Char e deixou um volume póstumo, Èloge d'une Soupçonnée, de onde ecoam palavras premonitórias:

"Soupçonnons que la poésie soit une situation entre les images de la vie,
/l'approche de la douleur
l'élection exhortée, et le baisement même. Elle ne se séparerait de son vrai
/coeur que si le plein
découvrait sa fatalité, le combat conmencerait entre le vide et la communion.
Dans ce monde
transposé, il nous resterait à faire le court Èloge d'une soupçonnée".6

O ataque cardíaco, que o fulminou em fevereiro de 1988, calou uma das vozes imprescindíveis da tradição poética moderna nascida nos alvores do século XX.

1 Furor e mistério, trad. Margarida Vale de Gato, Lx., relógio d'Água, 2000, publicado no jornal Expresso.
2 Ralentir Travaux, Paris, José Corti, 1991.
3 Este fanático das nuvens, trad. Yvette K. Centeno, Lx., Cotovia, 1995.
4 Op. Cit., p. 5
5 idem, p. 17
6 Èloge d'une Soupçonnée, Paris, Gallimard, 1988


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