terça-feira, 28 de junho de 2011


LINGUAGEM, SACRIFÍCIO, SILÊNCIO1

O apelido de Paul Celan resultou da anagramatização do apelido familiar, Antschel. A família era de origem judia, como a maioria dos habitantes de Czernowitz, cidade onde o poeta nasceu, e elegeram o alemão como língua de cultura e integração social. O jovem Celan dominava o romeno, e aprendera o alemão correcto e sem inflexões. Concluiu o bacharelato em 1938, e estudou ainda francês, grego e latim. Nesse ano viaja para Tours. Está em Berlim na véspera da "Kristalnacht". Consegue passar o natal com os pais, mas o início da guerra impediu-o de voltar para a França . Em 1941, o exército romeno e as SS alemãs entram em Czernowitz, assassinam o rabino e começam as deportações. Os judeus escondiam-se nos fins de semana; os seus pais escolheram esconder-se numa antiga fábrica. No final da sétima semana de fugas e tormentos, a mãe resolve enfrentar o destino. Ao retornar a, Celan encontra-a vazia. No outono recebeu uma carta da mãe a informá-lo que o pai estava doente; foi depois abatido com um tiro, e a mãe sucumbiu pouco depois.
Com a libertação inicia a errância. Viveu em Bucareste onde aproximou-se do grupo neo-surrealista e trabalhou como tradutor. Passou algum tempo em Viena, onde publicou Der Sanden aus den Urnen, cujos poemas foram aproveitados para o que considerava ser o seu primeiro livro, Mohn und Gedächtnis. Em 1948 assume o exílio definitivo em Paris, onde estudou literatura germânica e licenciou-se em 1950, depois assumiu o leitorado na École Normale Supérieure, até o seu suicídio.
O discurso "Der Meridian", foi lido na entrega do prêmio Büchner de Literatura, de Darmstadt. Para Celan a década de 60 foi proveitosa, publicara obras centrais como Die Niemandrose, Atemwende, Fadensonnen, Lichtzwang. Traduzira em profusão autores como Mandelstam, Marianne Moorer, Ungaretti, René Char, Michaux, Superviele e Pessoa. É também nessa década que se acentuam as crises nervosas.
A obra de Celan concorre para fazer a síntese da lírica alemã contemporânea, mas sob o impacto histórico criado pela guerra. para o ensaísta italiano Giuseppe Bevilacqua, Celan "foi o primeiro a combinar a herança romântica, as instâncias realistas e a concepção trágica da História"2.
Ao presenciar a anulação gradual dos referenciais da sua vida, o poeta remete-se a um progressivo encontro com o silêncio. A tensão constante que o atormentava, traduzir-se-ia no impasse, na interrogação que atravessa a sua obra. Era a evidência dolorosa de estar a escrever numa língua geradora de desastres, "A língua dos assassinos da minha mãe". Celan acaba por fazer refractar tal premissa na sua poesia. É a testemunha e o intérprete da tragédia. No discurso que pronuncia na entrega do prêmio da cidade de Bremen, diz: "No meio das 'perdas' daquela época, uma coisa permaneceu 'acessível', próxima e salva - a língua".
A linguagem surge aparelhada pela depuração extrema; o poeta abrevia o mais possível para tornar legível o seu mundo. Mas a legibilidade é edênica, o poeta quer uma língua nova, exige um tu e um eu espectrais como interlocutores. A sua busca visava encontrar uma terra santa da linguagem para situar e fundar o seu espaço, só que este processo radical tinha um fim: o silêncio. O mergulho hermenêutico de Celan levou-o a quase anular o fluxo verbal; ele contrai o discurso e precipita-o numa trama perigosa, como vira Jean Starobinski: "Quando a palavra não pode habitar o mundo, nem o poeta pode habitar a palavra".
para se ler esta poesia é necessário aguçar a percepção, atendendo sempre às pausas, interrupções e fragmentações dos versos. As palavras isoladas vivem na página, Celan quer libertá-las desta "grade verbal" e a libertação dar-se-á através da consciencialização deste novo mundo poético. A sua genealogia poética não tem um centro específico, está em todas as partes, como bem viu Harald Weinrich: "Ele tende a assumir na sua pessoa, na sua obra, todo um século de poesia europeia".
Ao atirar-se bêbado ao Sena, numa data que oscila entre 20 e 21 de abril de 1970, encerrava assim um percurso ímpar. Ao aprofundar uma escrita admiravelmente vincada pela busca sintética de um recrudescimento da linguagem num nicho vocabular hipercondensado, como se a sua ânsia fosse submeter a palavra a uma cela feita de silêncio e lucidez.

1 Arte poética, trad. Yvette K. Centeno e João Barrento, Lx, Cotovia, 1996, publicado n o jornal Expresso.
2 La verità della Poesia, Einaudi, 1993.
3 op. cit., p. 31

Nenhum comentário: