terça-feira, 14 de junho de 2011

ALEMÃES


TRAKL1

Escreveram-se milhares de páginas, teses e livros sobre a tragédia da Primeira Guerra Mundial. Há um pormenor que, ao meu ver, merecia mais atenção: a participação dos artistas e escritores que estiveram na frente de combate. Recordo figuras como T. E. Hulme, Wilfred Owen, Apolinnaire e Georg Trakl, só para citar alguns exemplos. Detenho-me em Trakl, que na verdade não morreu em combate. A personalidade frágil e maníaco-depressiva do poeta não resistiu à visão das centenas de mortos que chegavam à enfermaria onde estava a cumprir serviço e, a 4 de novembro de 1914, tomou uma overdose de cocaína.
Nascido em Salzburgo, em 1887, Trakl foi um dos nomes fulgurantes do movimento expressionista alemão onde pontuaram Ernst Stadtler, Georg Heym, Gottfried Benn. Publicou só uma recolha de poemas, em 1913, com a ajuda do amigo, Ludwig Von Ficker. As fotos que restaram do poeta testemunham o espírito tenso, que desde cedo ficara dependente das drogas e do álcool. para completar o quadro negro da sua vida, Trakl manteve uma relação incestuosa com a sua irmã, Grete - que aparece de forma obsessiva nos poemas.
O poeta conseguiu gerar uma poética carregada de atrito com o mundo. Ferido pelo reflexo do horror interior, debateu-se com uma linguagem genuína. Era como se o poeta fosse porventura tocado por uma melancolia atormentada, em que a presença da morte, a soturnidade perceptiva e o tomo solenemente distante configurassem a sua imagética pessoalíssima. Em poemas como "Lamento", "Grodek" - escrito pouco antes da sua morte -, verifica-se o tom peculiar que encontra uma visão aterradora da realidade:

"Na tarde retumbam os bosques de Outono

De armas mortíferas, os plainos dourados

E lagos azuis, e por cima o Sol

Mais lôbrego rola

(…)

Mas calmos juntam-se no fundo dos prados

Nuvens vermelhas, onde mora um deus irado,

O sangue vertido, lunar frialdade”1


Herdeiro de uma lírica que tem Novalis como preceptor, mas também a possessão visionária de Hölderlin, Trakl - utilizando uma imagem de Gottfried Benn em Problem der Lyrik - apanha a lança e projeta-a para além de si. Daí a possibilidade de rastrear indícios seus em boa parte da poesia alemã. O assombro de Rilke ante a sua descoberta é elucidativo. Paul Celan foi um dos poetas contemporâneos que celebrou um diálogo direto com Trakl.

A obra mínima que deixou, à maneira de Kavafis, não limita a projeção desta poesia que causa uma tensão constante. Profundamente obscura e violentamente nostálgica, a poesia de Trakl exerce uma atração avassaladora sobre o leitor. Felizmente a sua obra cativou a atenção de tradutores portugueses, como Paulo Quintela e João Barrento.

1 Poemas - Georg Trakl, trad. Paulo Quintela, Porto, Oiro do Dia, 1981, publicado no jornal Expresso, em 1999.

2 Outono Transfigurado, trad. João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992.


Nenhum comentário: