sexta-feira, 27 de maio de 2011




O MENTOR DAS IMAGENS1

"E o velho T. E. Hulme foi lá,
com um montão de livros da biblioteca,
a biblioteca de Londres, e um obus enterrou-os num buraco de trincheira,
e uma bala atingiu-o no cotovelo
...depois de atravessar o cara que estava na sua frente,
e ele leu Kant no hospital em Wimbledon,
no original,
e a direção do hospital não gostou daquilo"2

Foi assim que Ezra Pound homenageou Thomas Ernest Hulme no poema XVI da sua obra maior, Os Cantos. Nessse poema, Pound recorda os amigos que estiveram ao seu lado numa trincheira específica, a do Imagismo, e na trincheira verdadeira da Primeira Guerra Mundial: Richard Aldington, Gaudier Brzeska, Wydham Lewis e Hulme, que morreu em 1917, com 34 anos. A fulgurância das ideias, o fascínio pelo diálogo e a ousadia das propostas estéticas congregaram ao redor de si toda a geração que iria ditar os rumos da literatura no mundo anglo-saxónico.
Durante as duas primeiras décadas do século XX, nas cadeiras do Poet's Club ou do restaurante Eiffel Tower, em Londres, as discussões cruzavam águas revoltas. Uns propunham a utilização das formas orientais como o haiku e o tanka para renovar a poesia inglesa; outros batiam-se pelo verso livre. As opiniões dividiam-se. Coube a T. E. Hulme promover alguma coesão e o título de inspirador principal destes artistas que ficariam conhecidos como "Imagistas".
Hulme acreditava no surgimento de uma poesia "séria e sofisticada". Tornava-se necessário recuperar, para a nova época que se avizinhava, outra percepção e outra expressão. Teorizou acerca de um gênero de neoclassicismo que procurava subtrair as influências do romantismo na poesia inglesa. Para Hulme, a visão do artista não deveria ser compósita, mas converter-se num todo concentrado, e assim comunicar a imagem de forma vital. A criação de novas metáforas e analogias, o emprego da linguagem coloquial, do verso livre e a utilização de novas sequências rítmicas formam o conjunto destas propostas. Segundo defendia, o poeta deveria selecionar palavras concretas que permitissem traduzir as propriedades visuais das coisas:
"Não mais nos esforçaremos por atingir a forma absolutamente perfeita em poesia; em vez destas diminutas perfeições da palavra e da frase, a tendência será para a produção de um efeito geral, o que retirará obviamente o predomínio ao metro e ao número regular de sílabas como elemento da perfeição do discurso. Já não nos interessa que as estrofes sejam moldadas e polidas como jóias, mas que se comunique uma vaga disposição do espírito. procuramos em todas as artes de expressão individual e pessoal em vez de tentarmos alcançar qualquer beleza absoluta"3
Na divisão que fez entre romantismo e classicismo, Hulme diz que o artista romântico ultrapassa os limites do homem; o artista clássico, pelo contrário, tem absoluta consciência destes limites. Foram teorias como estas que serviram de apoio aos fundamentos do Imagismo.
Na célebre nota introdutória aos cinco poemas deixados por Hulme e publicados como apêndice do seu próprio livro, Ripostes, Pound reconheceu a dívida:
"Os imagistas são descendentes desta escola esquecida de 1909, quando Hulme efectuou a sua organização".
Os escritos sobre arte começaram a ser publicados em 1913. A leitura atenta destes textos leva-nos a concluir que as preocupações de Hulme apontavam para um interesse cada vez maior pelas artes plásticas. Hulme declarou que a arte estava à procura de uma nova forma de ver, perceber e exprimir as coisas; que só outra atitude do artista perante a apreensão do mundo poderia criar uma nova abstração:
"Se negarmos completamente a existência de uma 'tendência para a abstração' em arte, vamos naturalmente negar a sua manifesta aparição em Cézanne. Dir-me -ão que a simplificação de planos (da qual evidentemente surgiu o cubismo) não é provocada por qualquer 'tendência para abstração', antes é o resultado de um esforço para dar ao objeto um tipo de realidade mais sólido. Poderão defender que, quando Cézanne afirmou que as formas da natureza podiam ser reduzidas ao cone, ao cilindro e à esfera, ele pretendia dizer algo muito diferente do significado óbvio das suas palavras. Esta deturpação de Cézanne resulta do facto de se ter recusado a ver a verdade óbvia, que a sua obra insinua essa 'tendência para a abstração"4.
A primeira edição destes escritos foi editada em 1924, com a organização de Herbert Read. Contudo, havia ainda muito material disperso. Sucessivas edições foram surgindo e a importância do seu trabalho recebeu uma avaliação mais objectiva, embora não fosse do seu agrado transformar-se num pensador sistemático. Na verdade a leitura desses textos leva-nos a acreditar que, como Henri Bergson já havia previsto na carta que escreveu aos directores de Cambridge para que Hulme pudesse voltar a estudar naquela universidade, ele era um ensaísta completo.
A presença do seu pensamento encontra-se na obra de figuras tão díspares como Pound, Eliot, Amy Lowell, Marianne Moore, Hilda Doolitle e Walace Stevens. Isto demonstra a amplitude que as suas ideias atingiram e é o reconhecimento que todo o artista gostaria de ter.

1 Imagens da modernidade - ensaios sobre poesia, Lx., Colibri, 1995; publicado no jornal Expresso.
2 Os cantos, RJ, Nova Fronteira, 1986.
3 Op. cit., p. 54
4 Op. cit., p. 194.



segunda-feira, 23 de maio de 2011



O LOUCO DE DEUS1

Da linhagem dos grandes visionários, William Blake é um poeta que ultrapassou as linhas usuais seguidas pelos românticos ingleses. Um dos que o defendeu das falácias pejorativas foi Wordsworth: "Não há dúvida que esse homem era louco, mas há algo na sua loucura que me interessa mais do que a sanidade de Byron e Walter Scott".
A sua biografia enumera várias passagens intrigantes. Aos quatro anos disse ter visto o rosto de Deus pela janela do seu quarto. As visões continuaram e aos seis anos afirmou que encontrara o profeta Ezequiel sentado num descampado, e que ao passear pelos bosques de Peckam, em Londres, vira anjos a brincar numa árvore. Embora tenha estudado na Academia Real das Artes, a sua formação literária fez-se na mais completa liberdade, tutelada por leituras de Paracelso, Jacob Böhme, Shakespeare, Milton e a Bíblia. Motivos não faltavam para tal apetência, já que o pai era seguidor dos preceitos de Emanuel Swedenborg. A partir dos 18 anos tornou-se gravador, aperfeiçoando uma técnica de gravura com um método particular baptizado como "impressão iluminada", que consistia num processo transmitido, segundo afirmou, pela visão do espectro do falecido irmão. A técnica consistia no uso de cera e ácido e permitia-lhe usar na prensagem todos os matizes de cores desejáveis. Aplicou-a para ilustrar Os Portões do Paraíso e outras obras que publicou em edições reduzidíssimas. O texto e as ilustrações eram gravados em placas de cobre que serviam para impressão das páginas, em seguida os desenhos eram coloridos minuciosamente à mão, trabalho em que participava a mulher Catherine Boucher, que o poeta ensinara a ler e a pintar.
Blake não foi poupado pelos críticos, tanto pelo seu trabalho literário como o pictórico. Na Pintura era considerado um neomaneirista ameno, e na poesia um neogótico deslocado. Não era nem uma coisa nem outra, estava além das designações rasteiras, a engendrar cânones absolutamente pessoais, demonstrando uma rebeldia explícita contra a sua época.
O visionarismo poético e profético cultivado por Blake opunha-se ao racionalismo do século das luzes, o enciclopedismo e a Academia das Ciências. Ele acreditava que figuras como Bacon, Newton e Locke formavam uma falsa tríade do racionalismo inglês. No afã de encontrar a explicação da história e da natureza do mundo, inspirado na ideia da queda do homem - daí o fascínio por Milton - e da redenção final, Blake arquitecta um sistema poético original, prescrito por um mecanismo gnóstico dos ideais. Despontam então personagens como Urizen, Thiel, Orc ou Enitharmon, que encenam as encarnações místicas da sua utopia poética, materializada na luta da imaginação contra a tirania da razão. O dispositivo funcional deste exercício personifica o ritmo enérgico, o tom bíblico e a ressonância apocalíptica das imagens:

"Ver num grão de areia um mundo,
Um céu numa flor silvestre,
ter na mão o infinito,
Numa hora a eternidade."

Na última fase, encerrada em 1820, surgiram os livros proféticos - As visões da Filha de Albion, América, O primeiro Livro de Urizen, O Livro de Los, Milton e Jerusalém. Blake aproveitou para mudar o estilo, abolindo a rima e esculpindo um gênero de verso livre constituído por sete acentos rígidos. Depois abandonou a poesia e passou a dedicar-se unicamente à gravura. O homem que adorava crianças e as pessoas simples, dono de um caráter colérico, morreu cantando em 1827. Tinha setenta anos.

1 Poemas do Manuscrito Pickering seguido d'os Portões do Paraíso, trad. Manuel Portela, Antígona, 1996; publicado no jornal Expresso.
2 op. cit., p. 37.


segunda-feira, 16 de maio de 2011



TESTEMUNHO DO FRACASSSO1

Nos primeiros minutos de Citizen Kane - O mundo a seus pés, de Orson Welles, aparece a seguinte epígrafe: "In Xanadu did Kubla Khan/slately pleasure - dome decree". São o versos iniciais do poema "Kubla Khan or a vision in a Dream", escrito por Samuel Taylor Coleridge no verão de 1797. Segundo o poeta esclarecera no texto que antecede o poema, estava a ler uma passagem do Purcha's Pilgrimage, que relata a construção de um palácio mandado erguer pelo imperador cuja fama ficou conhecida no Ocidente através dos relatos de Marco Polo. Sentiu-se indisposto, tomou láudano e adormeceu. Coleridge desatou a transcrever o poema sonhado, mas uma visita repentina interrompeu-o e o que restou ficou impresso nos versos que hoje conhecemos. A história é famosa, e Borges - fiel admirador do poeta inglês - escreveu sobre este curiosíssimo entrelaçamento entre sonho, mito e realidade.
O "esplendor indiscutível" do poema , e de mais alguns, formam o núcleo da poesia de Coleridge e garantiram o respeito de seus pares por esse "mighty poet". Coleridge pertence a categoria de autores cuja produção não é extensa. Como a sua obra é relativamente pequena e fragmentária não chegou a lograr a justa proeminência, ofuscada pela projeção alcançada pelo seu amigo e companheiro de geração, William Wordsworth, com quem escreveu Lyrical Ballads.
A magnificência mística de Blake e a poética fantasmática de Coleridge sustentam o edifício "alucinatório" do romantismo inglês. Para Harold Bloom, a poesia de Coleridge permite uma divisão polarizada entre o que designa como "grupo demoníaco", isto é, os poemas "Ancient Mariner", "Christabell" e "Kubla Khan", o segundo grupo inclui poemas tais como "The Eolian harp" e "Frost at midnight", baptizados pelo crítico como "poemas coloquiais". A proposição ajuda-nos a penetrar fundo na obra do poeta, ainda que existam outros poemas indispensáveis como "Dejection: an Ode", pelo qual T. S. Eliot tinha particular admiração.
Escrito há mais de 200 anos, o poema "A Rima do Velho Marinheiro" foi publicado no volume escrito com Wordsworth, em 1798, período que se notabilizou pelo germinar desses momentos notáveis da poesia de Coleridge. Certos críticos acreditam que a amizade com o autor de "The Prelude" ajudara no processo. Porém Wordsworth não demonstrou entusiasmo pelo poema.
A narração feita pelo velho homem do mar, descreve as experiências vividas num barco que fica à deriva nas águas do Polo Sul e as vicissitudes encontradas pelo caminho. O poeta compôs um poema exemplar, sob a égide da cadência tradicional da balada inglesa.
Submisso às exigências do tempo e aos obstáculos da vida real, a redenção purificadora assente na história assume um pendor metafórico da travessia do poeta no mundo. Além dos casamentos falhados, do vício do láudano, da fama apagada e dos entraves financeiros, Coleridge não conseguiu defraudar o destino. O "Ancient Mariner" é, de certa maneira, o seu testemunho do fracasso, o assumir da derrota. Isto é perceptível na mensagem final transvazada de resignação:

"Desde então, a hora incerta,
Esta agonia retorna:
Até que deste conto
medonho dou relação,
Sinto cá dentro do peito
A arder, o meu coração.
Vou seguindo, como a noite,
A passar de terra em terra,
Com estranho dom de palavra;
Sei quem é o olho do rosto:
A ele eu conto o meu conto"2

O tradutor português antepôs à balada inglesa o verso que mais se aproxima desta, a redondilha maior, e superou assim as exigências do original criando uma versão repleta de passagens assinaláveis, além de manter um nível estilístico quase perfeito.

1 A Rima do Velho Marinheiro, trad. Gualter Cunha, Expo-98; publicado no jornal Expresso.
2 Op. cit., p. 58.



segunda-feira, 9 de maio de 2011



POÉTICA MESTIÇA1

As últimas escolhas dos senhores da Academia sueca têm revelado algum equilíbrio. Foi assim com Joseph Brodsky - Nobel de 1987 -, Octávio Paz (1990) e Seamus Heaney (1995). O galardão de 1992 veio coroar o percurso de Derek Walcott, admirado por muitos críticos, como Brodsky, que escreveu a introdução a Poems of the Caribbean 2. Brodsky fez a defesa de Walcott contra alguns críticos que o situavam como fenómeno regional, hesitando em admitir que a sua obra era uma das mais singulares da língua inglesa. As designações de “poeta antilhano” ou “poeta negro do Caribe” são redutoras. Toda grande poesia transpõe as grades que a aprisionam num espaço.

Nascido na ilha de Santa Lúcia, antiga colónia britânica, completou a universidade na Jamaica e estudou teatro nos Estados Unidos. Antes de receber o Nobel publicou aquela que é a sua obra mais arrojada, Omeros, onde tenta descontextualizar o “Brave New World”. Walcott experimenta a capitulação de uma “Odisseia” caribenha, galvanizada nos contrastes históricos, literários e na mestiçagem cultural. Não é só a nostalgia de um passado edénico que este poema quer canonizar, mas a interrogação da identidade nascida da confluência de mundos, mitos e heranças assimiladas.

Walcott sustenta a fluência do poema sob a forma de tercetos, reunidos pela tensão da elipse, das metáforas e o “flash-back”. À maneira joyciana, as figuras de Omeros personalizam os estereótipos da Odisseia e da Ilíada transpostos para a ilha onde nasceu o autor, as conotações mitológicas assumem parâmetros aproximativos. As referências interpõem-se, Homero entra e sai de cena, ora como o poeta mesmo, ora caracterizado na figura de Sete-Mares, o velho pescador cego. Achille e Hector são dois pescadores que travam o combate verbal para conquistar Helen, mulata sedutora e arrogante. A relação entre os amigos agrava-se quando ela abandona Achille para viver com Hector. Ma Kilmann é uma espécie de sibila, mãe-de-santo, dona do bar em que as personagens se encontram. Philoctete é um pescador que deixou o mar para ser plantador de inhame, tudo porque feriu o tornozelo na ponta de uma âncora e a ferida solta um odor nauseabundo. De acordo com o original, Philoctete é condenado pelos deuses a suportar uma ferida por ter revelado o lugar onde Héracles fora incinerado. Consegue curar-se depois de o centauro Quíron lhe receitar a seiva de uma planta. No poema de Walcott, Ma Kilmann prepara uma infusão e Philoctete purifica-se.

O poema atinge o auge na passagem em que Achille regressa em sonhos à aldeia dos seus antepassados, no golfo do Benim, reencontrando o pai, Afolabe, que o repreende por ter esquecido o seu nome africano. Afolabe condena-o e profere a frase simbólica do poema, pois se “está feliz por não conhecer os significados dos nomes”, então o “filho sem nome” é o “fantasma de um nome”.

Toda a epifania de Omeros se centra neste encontro, que é a alternância entre passado e presente intertextual. O impacto que o poema provoca no leitor foi resumido com precisão por Joseph Brodsky: “Walcott baseia-se na convicção de que a língua é maior do que os senhores ou os seus escravos, de que a poesia, sendo a versão suprema da língua, é um instrumento de auto-aperfeiçoamento tanto para uns quanto para os outros”3.

1 Omeros, London, Faber and Faber, 1993.

2 Poems of the Caribbean, NY, Limited Editions Club, 1983.

3 In Menos que Um, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.




terça-feira, 3 de maio de 2011



O CANTOR SUICIDA1

No conjunto da obra de um poeta encontramos sempre uma que absorve a atenção e incorpora o paradigma de um determinado autor. Lembro, por exemplo, de Trilce de César Vallejo, Ossi di Sépia de Eugenio Montale ou Tristia de Ossip Mandelstam. A Ponte de Hart Crane encarna esta premissa e é o ápice de todo o virtuosismo de uma lírica que acabou fugazmente.
Crane nasceu a 21 de julho de 1889, em Garretsville. Desempenhou diversas funções, como chefe de uma casa de chá, operário de estaleiro, balconista de pastelaria e repórter. Viajou pela Europa e o México foi o último país que visitou. O poeta oscilava entre períodos de criatividade intensa e outros da mais extrema aridez. Publicou o primeiro livro White Buildings2, em 1926. O seu protetor foi Otto H. Khan que o incentivou a seguir o trabalho literário. A Ponte saiu em 1930. Dois anos mais tarde consegue uma bolsa da Fundação Guggenheim. Viaja então para Paris e o México, onde se hospedou na casa de Katherine Anne Porter. A turbulência do álcool, de Eros e o caos dos "roaring twenties" haviam corroído já seus sentidos. A 27 de abril de 1932, ao regressar aos Estados Unidos na companhia de Peggy Cowley, uma das muitas mulheres que o tentaram "salvar" do homossexualismo, Crane lançou-se do SS Orizaba no mar das Caraíbas. Era o fim de uma vida curta e atormentada mas que produzira A Ponte, um poema que consegue igualar-se com outros grandes momentos da poesia norte-americana.
Conforme propôs Thomas Vogler, a intenção era ambiciosa, pois Crane "assegura a esperança no futuro face às tristezas do presente. Baseia-se na intuição de um passado glorioso e estabelece a ponte entre este passado e o futuro apesar do presente"3. Afirmações como a de Malcolm Cowley4 de que "Hart Crane bebia para escrever", assim como a sua homossexualidade, parecem ser demasiado superficiais para explicar a sua obra. É sobretudo a sua poesia que interessa.
A Ponte se organiza tendo como eixo simbólico a imagem da ponte de Broklyn e a partir dela agrupa as mais diversas personagens e temas que representam as referências categóricas do imaginário americano do passado e do presente. Crane observa o movimento desordenado do mundo e as imagens surgem expansivas. Colombo, Pocahontas, Rip Van Winkle, Poe, Whitman; o óleo derramado pelos barcos sendo levado pela correnteza do rio, o som ensurdecedor do trânsito e a velocidade do metro juntam-se para criar a paisagem urbana vislumbrada por Crane:

"Lentamente a janela ilumina-se. Ilumina-se com a
geada.
Das torres ciclópicas do outro lado das águas de
Manhattan
- Dois - três olhos como janelas brilhantes acendem-se, o disco
Solar, liberto - lá no alto gaivotas indiferentes"5

A autenticidade verbal veiculada por Whitman cede lugar, na poesia de Crane, a uma densidade metafórica:

"Como lanças ensanguentadas de uma sonante estrela
que sangra infinidade - as cordas órficas,
falanges siderais arremessam-se e convergem:
- Uma canção, uma Ponte de fogo!"6

A Ponte é a resposta de Crane a Waste Land de T. S. Eliot, que está presente em muitas passagens do poema como:

"No solo, junto às esquinas
jornais esvoaçam, volteiam e levantam voo.
Janelas vazias no meio do rumor gargarejam sinais"7

O escopo fundamental deste poeta era escrever um poema que sintetizasse "a epopeia da consciência moderna", só que forjado por uma lírica trágica e as imagens irradiam sua fúria mística:

"E de novo as luzes do trânsito que deslizam pelo teu idioma
veloz e total, imaculado suspiro de estrelas
ornando o teu caminho, condensam a eternidade"8

O poema revela-nos uma voz hierática e demoníaca:

"Tu que respondes a tudo, - Anêmona, -
agora, quando as tuas pétalas soltam sóis à nossa volta, defende -
(Ó tu cujo esplendor é a minha herança)
Atlântida, - defende o teu cantor flutuante!9

Vinte e sete anos após o seu suicídio, outro poeta cantor do imaginário do seu país - Robert Lowell -, homenageou-o com um pequeno poema que define um pouco o poeta que, no auge das noites etílicas, dizia ser a reencarnação de Christopher Marlowe:

Because I knew my Whitman like a book,
stranger

"in America, tell my country: I,
Catulus redivivus
(...)
Who asks for me, the Shelley of my age,
must lay his heart out for my bed and board"10

1 A Ponte, trad. Maria João Guimarães, Lx., Relógio d'Água, 1995; publicado no jornal Expresso.
2 White Buildings, NY, Liveright Publishing, 1986.
3 The Bridge, NY, Liveright, 1992.
4 Exile's Return - a literary odyssey, Penguin, 1994.
5 op. cit., p. 31.
6 idem, p. 113
7 idem, p. 105
8 idem, p. 19
9 idem, p. 113
10 "Porque sabia Whitman de memória e o que o livro,/ estrangeiro na América, dizia ao meu país: Eu/ cattulus redivivus(...) Aquele que perguntar por mim, o Shelley da minha época,/ deverá ofertar-me o coração para servir-me como cama e alimento".