segunda-feira, 16 de maio de 2011



TESTEMUNHO DO FRACASSSO1

Nos primeiros minutos de Citizen Kane - O mundo a seus pés, de Orson Welles, aparece a seguinte epígrafe: "In Xanadu did Kubla Khan/slately pleasure - dome decree". São o versos iniciais do poema "Kubla Khan or a vision in a Dream", escrito por Samuel Taylor Coleridge no verão de 1797. Segundo o poeta esclarecera no texto que antecede o poema, estava a ler uma passagem do Purcha's Pilgrimage, que relata a construção de um palácio mandado erguer pelo imperador cuja fama ficou conhecida no Ocidente através dos relatos de Marco Polo. Sentiu-se indisposto, tomou láudano e adormeceu. Coleridge desatou a transcrever o poema sonhado, mas uma visita repentina interrompeu-o e o que restou ficou impresso nos versos que hoje conhecemos. A história é famosa, e Borges - fiel admirador do poeta inglês - escreveu sobre este curiosíssimo entrelaçamento entre sonho, mito e realidade.
O "esplendor indiscutível" do poema , e de mais alguns, formam o núcleo da poesia de Coleridge e garantiram o respeito de seus pares por esse "mighty poet". Coleridge pertence a categoria de autores cuja produção não é extensa. Como a sua obra é relativamente pequena e fragmentária não chegou a lograr a justa proeminência, ofuscada pela projeção alcançada pelo seu amigo e companheiro de geração, William Wordsworth, com quem escreveu Lyrical Ballads.
A magnificência mística de Blake e a poética fantasmática de Coleridge sustentam o edifício "alucinatório" do romantismo inglês. Para Harold Bloom, a poesia de Coleridge permite uma divisão polarizada entre o que designa como "grupo demoníaco", isto é, os poemas "Ancient Mariner", "Christabell" e "Kubla Khan", o segundo grupo inclui poemas tais como "The Eolian harp" e "Frost at midnight", baptizados pelo crítico como "poemas coloquiais". A proposição ajuda-nos a penetrar fundo na obra do poeta, ainda que existam outros poemas indispensáveis como "Dejection: an Ode", pelo qual T. S. Eliot tinha particular admiração.
Escrito há mais de 200 anos, o poema "A Rima do Velho Marinheiro" foi publicado no volume escrito com Wordsworth, em 1798, período que se notabilizou pelo germinar desses momentos notáveis da poesia de Coleridge. Certos críticos acreditam que a amizade com o autor de "The Prelude" ajudara no processo. Porém Wordsworth não demonstrou entusiasmo pelo poema.
A narração feita pelo velho homem do mar, descreve as experiências vividas num barco que fica à deriva nas águas do Polo Sul e as vicissitudes encontradas pelo caminho. O poeta compôs um poema exemplar, sob a égide da cadência tradicional da balada inglesa.
Submisso às exigências do tempo e aos obstáculos da vida real, a redenção purificadora assente na história assume um pendor metafórico da travessia do poeta no mundo. Além dos casamentos falhados, do vício do láudano, da fama apagada e dos entraves financeiros, Coleridge não conseguiu defraudar o destino. O "Ancient Mariner" é, de certa maneira, o seu testemunho do fracasso, o assumir da derrota. Isto é perceptível na mensagem final transvazada de resignação:

"Desde então, a hora incerta,
Esta agonia retorna:
Até que deste conto
medonho dou relação,
Sinto cá dentro do peito
A arder, o meu coração.
Vou seguindo, como a noite,
A passar de terra em terra,
Com estranho dom de palavra;
Sei quem é o olho do rosto:
A ele eu conto o meu conto"2

O tradutor português antepôs à balada inglesa o verso que mais se aproxima desta, a redondilha maior, e superou assim as exigências do original criando uma versão repleta de passagens assinaláveis, além de manter um nível estilístico quase perfeito.

1 A Rima do Velho Marinheiro, trad. Gualter Cunha, Expo-98; publicado no jornal Expresso.
2 Op. cit., p. 58.



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