segunda-feira, 23 de maio de 2011



O LOUCO DE DEUS1

Da linhagem dos grandes visionários, William Blake é um poeta que ultrapassou as linhas usuais seguidas pelos românticos ingleses. Um dos que o defendeu das falácias pejorativas foi Wordsworth: "Não há dúvida que esse homem era louco, mas há algo na sua loucura que me interessa mais do que a sanidade de Byron e Walter Scott".
A sua biografia enumera várias passagens intrigantes. Aos quatro anos disse ter visto o rosto de Deus pela janela do seu quarto. As visões continuaram e aos seis anos afirmou que encontrara o profeta Ezequiel sentado num descampado, e que ao passear pelos bosques de Peckam, em Londres, vira anjos a brincar numa árvore. Embora tenha estudado na Academia Real das Artes, a sua formação literária fez-se na mais completa liberdade, tutelada por leituras de Paracelso, Jacob Böhme, Shakespeare, Milton e a Bíblia. Motivos não faltavam para tal apetência, já que o pai era seguidor dos preceitos de Emanuel Swedenborg. A partir dos 18 anos tornou-se gravador, aperfeiçoando uma técnica de gravura com um método particular baptizado como "impressão iluminada", que consistia num processo transmitido, segundo afirmou, pela visão do espectro do falecido irmão. A técnica consistia no uso de cera e ácido e permitia-lhe usar na prensagem todos os matizes de cores desejáveis. Aplicou-a para ilustrar Os Portões do Paraíso e outras obras que publicou em edições reduzidíssimas. O texto e as ilustrações eram gravados em placas de cobre que serviam para impressão das páginas, em seguida os desenhos eram coloridos minuciosamente à mão, trabalho em que participava a mulher Catherine Boucher, que o poeta ensinara a ler e a pintar.
Blake não foi poupado pelos críticos, tanto pelo seu trabalho literário como o pictórico. Na Pintura era considerado um neomaneirista ameno, e na poesia um neogótico deslocado. Não era nem uma coisa nem outra, estava além das designações rasteiras, a engendrar cânones absolutamente pessoais, demonstrando uma rebeldia explícita contra a sua época.
O visionarismo poético e profético cultivado por Blake opunha-se ao racionalismo do século das luzes, o enciclopedismo e a Academia das Ciências. Ele acreditava que figuras como Bacon, Newton e Locke formavam uma falsa tríade do racionalismo inglês. No afã de encontrar a explicação da história e da natureza do mundo, inspirado na ideia da queda do homem - daí o fascínio por Milton - e da redenção final, Blake arquitecta um sistema poético original, prescrito por um mecanismo gnóstico dos ideais. Despontam então personagens como Urizen, Thiel, Orc ou Enitharmon, que encenam as encarnações místicas da sua utopia poética, materializada na luta da imaginação contra a tirania da razão. O dispositivo funcional deste exercício personifica o ritmo enérgico, o tom bíblico e a ressonância apocalíptica das imagens:

"Ver num grão de areia um mundo,
Um céu numa flor silvestre,
ter na mão o infinito,
Numa hora a eternidade."

Na última fase, encerrada em 1820, surgiram os livros proféticos - As visões da Filha de Albion, América, O primeiro Livro de Urizen, O Livro de Los, Milton e Jerusalém. Blake aproveitou para mudar o estilo, abolindo a rima e esculpindo um gênero de verso livre constituído por sete acentos rígidos. Depois abandonou a poesia e passou a dedicar-se unicamente à gravura. O homem que adorava crianças e as pessoas simples, dono de um caráter colérico, morreu cantando em 1827. Tinha setenta anos.

1 Poemas do Manuscrito Pickering seguido d'os Portões do Paraíso, trad. Manuel Portela, Antígona, 1996; publicado no jornal Expresso.
2 op. cit., p. 37.


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