segunda-feira, 4 de outubro de 2010


CÂNTICO BARROCO

Na linha evolutiva da poesia moderna brasileira, a obra de Jorge de Lima ocupa um lugar de honra, dividindo o núcleo primacial desta expressão com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Tais autores demonstram a vitalidade alcançada, são os pontos cardeais da poesia produzida naquele país a partir da primeira metade do século XX.

Ao se escrever sobre um poeta deste calibre, convém estar atento aos graus de dificuldade impostos pela amplitude das vozes, timbres e dissonâncias presentes na sua poesia. O aspecto multifário representa bem o poeta capaz de percorrer um caminho difícil, no momento crucial do lance mais engenhoso que projetou - A Invenção de Orfeu - interpretado por muitos como um jorro de fecundidade prolixa. Torna-se necessário apresentar todas as faces do poeta, antes de chegar a este ponto.

Não concordo com a ideia veiculada por Vitorino Nemésio ou Bandeira acerca da essencialidade de Jorge de Lima se encontrar nas figurações regionalistas cumuladas pela representação genuína da alma brasileira, cujo símbolo é o poema “Essa Negra Fulô”. É um juízo demasiado fácil, imerso na tendência relativamente folclórica para situar um artista. Esta característica do poeta ajudou a consolidar os processos históricos e literários do Modernismo brasileiro. Porém, o poeta que surgira como autor consagrado pelos versos parnasianos de “O Acendedor de Lampiões”, estava na iminência de transpor um ciclo, lançando-se à conquista de outras linguagens e novas máscaras, estas, fundamentalmente ecuménicas.

A conversão de Jorge de Lima não foi só religiosa, mas também literária. Efectuara-se com Tempo e Eternidade2 de 1935, livro escrito em parceria com Murilo Mendes. A obra estampava um dístico que resumia o programa seguido pelos poetas: “Restaurar a poesia em Cristo”. Envolto num catolicismo esotérico e apocalíptico, o livro inaugurou a viragem poética baseada na intensidade anímica do discurso bíblico:

“Parai tudo que me impede de dormir:

esses guindastes dentro da noite,

esse vento violento,

o último pensamento dos suicidas.”3

Os versos longos, o tom confessional, distinguem a religiosidade surreal:

“A Bem- Amada passou imensa como um icebergue e sumiu

Bebeu em Caná e sumiu.

(...)

Debaixo da lua entre gelos uivam lobos.

Lá anda a louca - a Bem-Amada cantando”4

Recomposto o poeta, a tensão interna deixa de adoptar a ressonância antiga, os acordes evocativos interrogam o tema da queda do homem, e a contemplação enigmática percorre a senda versicular retomada posteriormente em “Anunciação e Encontro de Mira-Celi”. Os ritmos extensos incorporam a vertente lírica extraída da teologia mística forjada pelo poeta:

“Aqui todos os seres têm órbitas donde os cometas nascem

e aos lábios descem sempre androceus,

e dos ventos brota húmus - glória de Mesopotâmia

que o senhor fez irrigar com sua saliva em fogo”5

Há passagens de “Mira-Celi” que antecipam os caminhos futuros. O tema do galo e da infanta transformam-se em exercícios introdutórios:

“Anjo caído

Memória e cal,

Galo sem Pedro

Sempre negado.

Face perdida

canção sozinha

de infanta jovem

defunta e santa

incorruptível”6

O regresso ao rigor métrico dá-se no “Livro de Sonetos”, dedicado a figuras como Adolfo Casais Monteiro, Gaspar Simões, Vitorino Nemésio, entre outros. É a obra onde afina as sequências órficas contrastadas pelo barroquismo peculiar que aos poucos assimila. O poeta recrudesce a sintaxe com o domínio vocabular extremo, o uso hábil dos metros e das rimas revelam achados difíceis de igualar. Emanam destas 78 peças inquirições densas de onde foi abolida a consagração cristã; o poeta volta-se para si mesmo e perscruta os referenciais genealógicos:

“Virado para o Marão o avô morrido

e o pai nesse Nordeste sepultado.

Rio Lima e Mundaú. O Filho nado,

em limo e sal de mar sobrevivido”7

São sinais inscritos nos ecos da consciência da língua e os seus entrelaçamentos culturais.

“A Invenção de Orfeu é o máximo documento literário da natureza barroca do Brasil”, a afirmação de Murilo Mendes - a quem coube a função de baptizar a obra - atinge o alvo central do poema, que exige a adesão total ou a antipatia imediata. João Gaspar Simões tinha a mesma opinião, embora afirmasse, também, que era “o primeiro poema da brasilidade”. Creio que as estâncias magnéticas do poema não foram escritas seguindo este princípio, estão mais além, progridem em direcção a um território inaugural específico: como fazer um épico contemporâneo. A resposta é: absorvendo tudo à sua volta, mas mantendo como norteamento o equilíbrio disjuntivo dos vários tons.

Foi assim que libertou a âncora da linguagem para desenhar o mapa deste poema, constituído por um esquema traçado pelo poeta: “Biografia total e não simples descrição de viagem ou de aventuras”.

A ornamentação deste vasto mural é feita com a mestria ambiciosa e a audácia criativa. Jorge de Lima opera todos os metros da língua, encabeçado pelo uso introspectivo dos decassílabos de modelo camoniano, burilados à exaustão. O tecido textual enreda-se na absorção dos estilos matizados, o diapasão bíblico, a imagética surreal, as glosas literárias, são constantemente acentuados. É uma espécie de orfismo exegético delineado aos poucos, calibrado pela progressão concêntrica:

“Eu quero sossegar forças rodantes, espiras, remoinhos, elos

simetrias das órbitas violadas, pensamento contínuo circulando-me”8

O poeta funda uma nova dimensão, recuperando os pontos luminosos da tradição, promovendo, em simultâneo, a aproximação entre realidades distintas que pela primeira vez encontram sentido juntas: Dante e Lautréamont, Milton e Rimbaud, Whitman e Góngora. São estas figuras que orientam cada recomeço:

“A chama como em Dante tinha voz

e era trina em seu vértice torcido.

Do cimo dominava os malebolges

e a altiva serra e a ínsula insofrida”9

A sucessão de personagens históricos, literários e mitológicos adensam a teia de complexidades. A dispersão parece actuar, contudo, a mudança de tom constitui um motivo perene, os poemas exibem plasticidades alucinatórias, as gradações são condicionadas por envolvimentos inesperados. Não há tempo em Invenção de Orfeu, umas épocas sobrepõem-se às outras, o poeta erige o espaço indeterminado para sincronizar o tempo oculto:

“Há umas coisas parindo, ninguém sabe

em que leito, em que chuvas, em que mês.

(...)

Em que útero fundo este ovo cabe

(...)

Fios para as aranhas orvalhadas.

Rosas florindo pêlos. Graves molhos,

mugidos sob as órbitas dos bois”10

Os cantos II e III apresentam passagens admiráveis, mas o IV, “As Aparições”, é onde se encontram o tema do cavalo e as longas homenagens a Maldoror:

“Nasce do suor da febre uma alimária

que a horas certas volta pressurosa.

Crio no jarro sempre alguma rosa.

A besta rói a flor imaginária

(...)

E ela me diz que invento esse delírio;

e planta-se no jarro e nasce em lírio.”11

Nem todas as partes são assinaláveis, e a própria extensão do poema explica as deficiências estruturais. Os cantos V, VI, VII parecem suspensos, como se o poeta estivesse a repor as energias. É essa tendência torrencial do poema o motivo principal das críticas que o poeta recebeu. No canto VIII, “Biografia”, ressurge o arrojo em que a batalha final do poeta contra os elementos é acompanhada por uma multidão de personagens. O embate traduz-se no enfrentamento com o poder da língua, reflectido no diálogo com Camões e as sucessivas homenagens, como no canto IX, “A Permanência de Inês”, Jorge de Lima conclui o trajecto com “Missão e Promissão”, onde discute os erros e acertos cometidos:

“Não a vaga palavra, corrutela

vã, corrompida folha degradada.

Mas a que é a própria flor arrebatada

pela fúria dos ventos: mas aquela

cujo pólen procura a chama iriada

- flor de fogo a queimar-se como vela”12

Este poema é a coroação completa de uma obra mesclada pela entrega totalizadora às ramificações entre culturas, erguendo um monumento à língua. O seu único fim foi cantar o idioma com as possibilidades que isso comporta e as limitações inerentes. É claro que invocar os poderes da tradição exige a coragem absoluta. Jorge de Lima estava consciente destes riscos, e não titubeou perante o intento que tinha idealizado. Sob a perspectiva de um sistema convulso de simbologias recuperadas, vasculhou o potencial com a exuberância da linguagem herdada, e todos os falantes da língua portuguesa deveriam unir-se para saudá-lo.

1- Poesia Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1997, publicado no jornal Expresso.

2- Idem

3- Idem, pg. 330

4- Idem, pg. 341

5- Idem, pg. 420

6- Idem, pg. 430

7- Idem, pg. 489

8- Idem. pg. 555

9- Idem, pg. 639

10- Idem, pg. 516

11- Idem, pg. 629

12- Idem, pg. 775




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