segunda-feira, 18 de outubro de 2010





O MIOLO DA LÍNGUA

Foram ultrapassados inúmeros entraves, polémicas entre os herdeiros do escritor e a projecção afirmada como romancista para que a tão almejada edição de Magma pudesse vir à luz. Equacionados todos os obstáculos, meio século depois o público pôde finalmente aceder aos poemas escritos na juventude por Guimarães Rosa e a primeira obra do autor de Grande Sertão: Veredas, que lhe valeu um prémio da Academia Brasileira de Letras, em 1936.

Há por detrás destes factos um pormenor de ordem jurídica que impediu a publicação do livro. Guimarães Rosa deixara a sua obra dividida entre três herdeiros, os desentendimentos dificultaram sempre um acordo com a editora. Contudo, chegaram a um consenso, eliminando a discussão que se avolumou nas últimas décadas. A pressão cada vez maior de leitores, críticos e editores fez com que os responsáveis por essa lacuna literária tomassem consciência da necessidade de acabar com o ineditismo de Magma.

Guimarães Rosa tinha 28 anos quando recebeu o galardão pelo seu livro de poemas, mas o baptismo como romancista dar-se-ia dez anos depois com Sagarana. Toda a sua fama se estruturou sob o impacto da poderosa imaginação ficcional e estilística do autor. Como se tratava do primeiro livro de um escritor consagrado, a curiosidade era grande, já que a maioria dos textos permanecia desconhecida. A rareza com que foram divulgados incitava a curiosidade dos leitores “rosianos”. Mas quando se folheia os primeiros poemas, o deslumbramento diminui. O que se apresenta diante dos olhos é um poeta bem próximo das experiências dos primeiros modernistas brasileiros. Distante da prosa inovadora assente nas páginas da ficção produzida durante 30 anos de vida literária, Magma acaba por ser um testemunho genésico, o exercício requerido para o autor se lançar em direcção ao voo estilístico que praticou. Neste sentido, o poeta Guimarães Rosa não fez mais do que seguir modelos ao retomar as experiências inauguradas por Bandeira, Oswald de Andrade ou Mário de Andrade, sem acrescentar outras conquistas de maior relevo.

Os dispositivos processuais estão bem visíveis. Amparado pelo regionalismo coloquial, submete o discurso a um resgate de personagens e lendas brasileiros interpenetrados por figuras mitológicas. Um aspecto original do mecanismo veiculado é, por exemplo, o poema “Iara”:

“Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,

afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,

carregando os jovens afogados:

Ondinas das praias, flexuosas,

Nixes da água furtacor do Elba

(…)

Mas a Iara não vem!

Porque a Iara tem sangue,

Porque a Iara tem carne”2

É inevitável fazer a comparação com os modernistas, já que o tom elaborado não se distancia daquele ordenado pelos seus companheiros:

“Lá bem pra trás da boca aberta do rio

onde solta os seus diabos

o bicho feroz da pororoca,

ela ficou cheia de medo,

brasiliana, tapuia, morena”3

Mesmo quando usa o haicai explorado nos poemas “telegráficos” de Oswald de Andrade ou praticado por Guilherme de Almeida , o autor não expõe nenhuma novidade:

“Viajei toda a Ásia

ao alisar o dorso

da minha gata angorá…”4

Só em alguns casos o poeta consegue imprimir medidas genuínas:

“E ao acendermos as velas e as lanternas,

a treva se retrai, como um enorme corvo,

das paredes paleozóicas,

salitradas.

Subterrâneos de Poe, salões de Xerazade,

Calabouços, algares, subcavernas

(…)

do centro da terra,

buracos negros, onde pedras jogadas

não encontram fundo, como pesadelos

de um metafísico…”5

Tais textos demonstram que o poeta soube impor uma forma lapidar, uma percepção coloquial, assumindo um excesso barroco, próximo, às vezes, de um Lezama Lima:

“Uma Vanessa tropical travou na campânula

de uma ipoméia

o voo oscilatório e helicoidal.

Dobra o quimono de franjas sinuosas,

Marchetado e hachureado

com minérios de cobre:

auréolas, anéis, jóias concêntricas,

olhos de íris elétrica e de pupila enorme

ocelos de um leque de pavão.”6

A transgressão linguística arquitectada por Guimarães Rosa amparou-se numa profunda pesquisa da linguagem, secundando-a pela clivagem revolucionária dos temas regionalistas. Há nestes poemas algo que anunciava a viragem futura, embora não produzam o impacto imediato, não anulam uma leitura detida da obra inicial daquele que alterou os limites da literatura brasileira para sempre:

“Como quem fecha numa gota

o Oceano,

afogado no fundo de si mesmo…”7

**

Se estivesse vivo8, teria completado 88 anos. Era capaz de acompanhar as comemorações do 50º aniversário de Sagarana e 40º de Grande Sertão: Veredas distante da azáfama jornalística, da qual fugia, calado e discreto, não fosse ele de Cordisburgo, Minas Gerais. E se lhe perguntassem sobre a glória e o êxito, certamente a resposta seria o silêncio. Com Guimarães Rosa, o romance brasileiro atingiu a sua mais alta expressão ao gerar um abalo do qual não se recuperaria tão cedo.

Tinha três meses quando Machado de Assis faleceu, em Setembro de 1908. Fez os estudos e formou-se em Medicina. O jovem médico era respeitado pela entrega e a preocupação com os pacientes, a ponto de ficar marcado pela morte de uma pessoa. Rosa chegou a ser médico voluntário durante as convulsões políticas que rasgaram o Brasil dos anos 30. Embora tenha abandonado a Medicina, não esqueceu a experiência, ele mesmo fez o parto das filhas Wilma e Agnes. Desde a infância mostrara facilidade em aprender línguas, tanto que aos seis anos já dominava o francês. Conhecia o alemão, o inglês; lia italiano, sueco e russo. Estudou ainda a gramática e a sintaxe do húngaro, do malaio, do persa, do chinês e do japonês. Um amigo, sabendo desta tendência natural, convence-o a concorrer ao corpo diplomático do Itamaraty, onde é admitido no Ministério do Exterior, em 1934.

Em 1938 recebeu a nomeação como cônsul adjunto, em Hamburgo. Quando o Brasil cortou relações com a Alemanha, em 1942, foi preso com a sua segunda mulher, em Baden-Baden, onde permaneceram três meses. Antes do desfecho, Rosa e Aracy de Carvalho tinham ajudado judeus a fugir da Alemanha. Com o fim das negociações entre os respectivos governos, o casal foi enviado para Portugal e trocado por diplomatas alemães vindos do Brasil.

O livro Sagarana fora vencido no concurso a que o submetera. Guimarães Rosa não desistiu, reviu o texto, efectuando cortes e suprimindo algumas histórias. Publica-o finalmente em 1946 e tem uma recepção extraordinária. Em Portugal foi publicado em 1961. Óscar Lopes aproxima-o de Aquilino Ribeiro, e chama a atenção para o exercício inovador do escritor:

“Guimarães Rosa não se limita a reproduzir com filológica fidelidade o linguajar dos ‘geralistas’, tal como Aquilino não faz o simples traslado de um dialeto beirão nos seus recantos de implantação regional(…) E não requereria grande engenho nem saber linguístico para mostrar as mais características ‘inovações’ deste prosador; elas caminham, organicamente, no sentido da evolução mais espontaneamente criadora da língua portuguesa, sobretudo na sua variante idiomática brasileira”9

Completara 38 anos quando publicou Sagarana. O magma linguístico brasileiro conservava aí a sua pluralidade. O título é um neologismo híbrido composto pelo radical germânico “saga” narrativas históricas ou lendárias e o sufixo tupi-guarani “rã” ou “rana” ao modo de, à semelhança de. Íntimo conhecedor da geografia, da fauna e da flora dos Gerais, Rosa crismava o passo iniciático para percorrer as veredas da literatura brasileira.

O percurso do escritor pode ser compreendido como uma sucessão de experiências que duram uma década para se concluir. Depois de Magma em 36, Sagarana em 46, finalmente, Grande Sertão: Veredas em 56. Romance da dúvida e do simbolismo, o combate maniqueísta subjacente na voz de Riobaldo desperta a todo instante ambiguidades bem/ mal, homem/ mulher:

“eu careço de que o bom seja bom e o ruim, ruim, que de um lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!”10

São vínculos tecidos através do sentido dúbio, metamorfoseados pela hibridez discursiva. Guimarães Rosa penetra no “miolo” da língua, consciente das transformações a executar. Mais do que a desintegração verbal, o projecto visa a amplitude da integração linguística. O virtuosismo quase jazzístico recupera tanto os efeitos da língua tupi, das matrizes arcaicas e clássicas, como os africanismos, deflagrando uma espécie de atomização anímica das palavras. Mário Vargas Llosa no prefácio que escreveu para a segunda tradução feita para o francês, intitulada Diadorim, sublinhou este aspecto:

“O Grande Sertão: Veredas é uma torre de Babel milagrosa, suspensa sobre a realidade humana, separada dela, no entanto viva. É um edifício mais próximo da música (ou de certa poesia) do que da literatura”11.

Os temas regionalistas da geração brasileira de 30 estavam esgotados. Guimarães desponta com um livro que corria o perigo de ser esquecido. O desafio implicava em estar dentro e fora da tradição, o escritor soube conciliar os opostos a todos os níveis, daí que a tentação fáustica e a hesitação homossexual de Riobaldo funcionem como alavancas para singularizar ainda mais a obra. Rosa eruditiza o folclore e folcloriza a erudição, universalizando a temática sertaneja. Riobaldo conta os seus casos a um interlocutor que não se define, a sua vida como chefe de jagunços, as lutas, a infância, o pacto com o demónio e o amor que dedica ao companheiro Diadorim. A dúvida e a indefinição cerceiam a estória, Riobaldo não tem a certeza de que firmou o pacto demoníaco, não sabe se realmente gosta de Diadorim, sendo ele homem, até à revelação final. O Grande Sertão: Veredas é o ápice da arte de Rosa, mas ele não ficou por aqui. Em 1962 publicou Primeiras Estórias, onde emerge um dos mais belos contos da língua portuguesa, “A terceira margem do rio”12.

Fora eleito para a Academia em 63, mas adiou a entrada, pois acreditava que morreria se algum dia viesse a tomar posse. 1967 é o ano de Tutaméia, livro difícil e polémico. Por esta altura, actuou como relator do debate promovido pelo Conselho de Cultura para discutir o acordo linguístico luso-brasileiro; era contra o projecto e a sua decisão contou com o apoio de Cassiano Ricardo, Adonias Filho e Rachel de Queiroz. Por fim, resolve aceitar a vaga da Academia, e três dias depois, a 19 de Novembro de 1967, um enfarte fulmina-o na sua mesa de trabalho.

Desaparecia assim o escritor, médico e diplomata, figura tímida que coleccionava gravatas-borboleta e sapatos, pensava em escrever um tratado sobre brinquedos para crianças calmas e admirava a astrologia. A sua travessia deixou-nos obras memoráveis e um mundo encantado pela força transgressora da linguagem:

As coisas assim, a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!”13

1 Magma, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1997, publicado no jornal Expresso.

2 Op. Cit., p.16/17

3 Idem, p.18

4 Ibidem, p. 34

5 Ibidem, p.35

6 Ibidem, p.125

7 Ibidem, 133

8 Texto publicado por ocasião da efeméride de Sagarana e Grande Sertão: Veredas.

9 Sagarana, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1982, p. XXXIV

10 Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.

11 Diadorim, Paris, Albin Michel, 1991.

12 Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 32

13 Op. Cit., p.319

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