Só há pouco tempo a poesia caleidoscópica e surreal de Murilo Mendes foi reunida e publicada no panteão das obras completas onde os mais importantes e consagrados autores brasileiros administram “a posteriori” a sua glória e o reconhecimento tardio. O caso de Murilo Mendes é simbólico, visto que o autor esteve relativamente esquecido no seu país durante os anos em que viveu na Europa.
Roma foi a cidade escolhida, nela ensinando literatura brasileira. A sua obra despertava o interesse de poucos, como os Concretistas que fizeram várias referências ao seu trabalho. O poeta soube extrair o material que, após passar pela simbiose dos sentidos e a sua forma peculiar de captar o universo e de sintetizar a contemporaneidade do seu tempo, ajudou-lhe a erguer uma obra haurida de todos os fenómenos artísticos que estivessem ao seu alcance.
A arquitectura da obra muriliana assenta neste domínio pluridisciplinar. O poeta faz uso das referências às artes plásticas, à música, ao cinema e à literatura criando uma correspondência contínua e ao mesmo tempo interrogando as dissonâncias do mundo e das coisas. Para Giuseppe Ungaretti, que prefaciou a edição de «Siciliana», Murilo «descobre em si aquela hora antiga da história humana em que intelecto, sentimento e sentidos encontraram seu puro, objectivo equilíbrio»2.
As palavras do poeta italiano sobre Murilo testemunham o respeito que o poeta brasileiro granjeou na Europa. A sua residência na Via del Consolato, onde se estabelecera em 1958, era um ponto nuclear onde se conglomeravam as mais diversas figuras da arte italiana daquele período. Era possível vislumbrar aí as paredes ornadas com as inúmeras obras com que era presenteado por amigos como Hans Arp, Arpad Szénes, Vieira da Silva, Georges Braque, De Chirico, Fernand Léger, Magritte, Miró. Em
Ainda em vida, a sua poesia chegou a ser reconhecida na Europa com o Prémio Etna-Taormina, em 1972. Um reconhecimento que já conseguira junto a inúmeros poetas estrangeiros com quem travou amizade, tão distintos como Ezra Pound, Henri Michaux, Jorge Guillén, Jean Cocteau ou René Char. As suas relações, em Portugal, não eram só de cunho familiar; criara também um círculo de amizade, como demonstra o livro «Janelas Verdes».
Fruto de um trabalho apaixonado da maior divulgadora da literatura de língua portuguesa na Itália, Luciana Stegagno Picchio, a edição de «Poesia Completa e Prosa» conta com notas e variantes que permitem perscrutar o método de Murilo. Registe-se entre os diversos contributos o de José Guilherme Merquior com «Notas para uma Muriloscopia», seguido pelo texto introdutório da professora responsável pela edição.
Nas suas memórias - «A Idade do Serrote», Murilo Mendes retrata o acontecimento que o marcou na infância e que o levou a tornar-se poeta:”Era 1910, ano que marcou muito na minha vida: a passagem do cometa de Halley»3. Poder-se-ia dizer que a poesia do autor assumiu certa semelhança com o fenómeno cósmico, ou seja, após o período de esquecimento que lhe foi dedicado, regressa para se revelar tão viva e actual.
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«Querido Murilo: será possível
que você este ano não chegue no Verão
que seu telefonema não soe na manhã de Julho
que não venha partilhar o vinho e o pão
(…)
Hoje escrevo porém para a Saudade
- Nome que diz permanência do perdido
para ligar o eterno ao tempo ido
e em Murilo pensar com claridade -
E o poema vai em vez desse postal
em que eu nesta quadra respondia
- Escrito mesmo na margem do jornal
Na Baixa - entre as compras de Natal
Para ligar o eterno e este dia.»
Sophia de Mello Breyner Andresen
O verso que conclui o belíssimo poema de Sophia é porventura muito conhecido dos leitores portugueses. Talvez não saibam é que foi escrito em memória do poeta brasileiro Murilo Mendes, falecido em Lisboa no pico do Verão de 1975. Foi a última viagem do poeta que passava as férias em Portugal, um hábito cultivado durante largos anos e que resultou nas diversas amizades que deixou nestas passagens estivais.
Natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, onde nasceu em 13 de Maio de 1901, legou-nos uma obra variada, explorando um género bastante pessoal, a prosa de viagens. É o caso do livro «Janelas Verdes»4, onde surge Portugal representado numa prosa descritiva e lírica, evocando as paisagens, os homens e as terras por onde passou e que mais o marcaram. A obra oculta um percurso curioso. Guardada durante muito tempo, viria a ter uma pequena divulgação, em Portugal, quando a Galeria 111 publicou uma edição de luxo apenas com a primeira parte, incluindo desenhos de Vieira da Silva, em 1989. O texto teve que esperar a edição da sua Poesia Completa e Prosa, em 1994, para ser conhecido por um público mais amplo. A edição da Quasi vem saldar uma dívida à memória do poeta.
Temos agora a oportunidade de conhecer a sua forma de compreender e interpretar, em simultâneo, um lugar, um instante, uma pessoa. Para Murilo, que cultivara a amizade como «uma das belas-artes», as viagens não eram só turismo. Aproveitava para mergulhar fundo nas coisas. Em «Janelas Verdes» é perceptível o encontro com a tradição da sua língua, e sobretudo com os amigos que acumulou por aqui. Nas passagens por Lisboa manteve contactos com escritores, pintores e poetas. Dedicou textos a cada uma destas personagens que o ajudaram a encontrar o país ao qual esteve ligado por laços familiares por ter casado com Maria da Saudade Cortesão, filha de Jaime Cortesão. Conheceram-se em 1940, altura em que o pai se exilara no Brasil; sete anos depois estavam juntos e em 1952 o casal fez a primeira viagem à Europa. Murilo viera cumprindo uma missão cultural e pronunciou várias conferências em alguns países. Em 1958 passa a viver na Itália, onde assume a cátedra na Universidade de Roma, até ao fim da vida.
Sem colidir com a sua poesia, Murilo amolda um tom na sua prosa em que a frase é utilizada com eficácia, equilibrando a imagem e a expressividade. O poeta doma a língua sob um impulso regenerador, deflagrando novas perspectivas:
“Évora, nome rápido, esdrúxulo (discordo de Fernando Pessoa, que sublinhou o ridículo das palavras esdrúxulas), implica Eva, uma Eva à qual se ajuntasse um r para significar ao mesmo tempo força, mulher e planta (erva), com aquele o central alusivo à esfera armilar pousada sobre uma fonte no Largo das Portas de Moura».
Despontam sempre novos sentidos que o poeta traduz, às vezes, com humor, como na leitura que faz sobre Freixo de espada à Cinta:
“Este o mais terrível de todos os topónimos de Portugal e outros reinos outrora encantados origina-se certamente de uma época em que as árvores se moviam, segundo nos informa por exemplo a tragédia de Macbeth. Quem ousaria dizer que Shakespeare se enganou?”6
Na segunda parte do livro, o autor inverte o movimento, os textos abandonam a evocação citadina, e ensaiam as homenagens a figuras literárias e artísticas como Gil Vicente, Nuno Gonçalves, Mariana Alcoforado, Teixeira de Pascoaes, entre muitos outros.
Com esta edição, podemos descobrir a escrita de um poeta que fundou - juntamente com Jorge de Lima - o que podemos designar de «surrealismo brasileiro», e que resumiu a si mesmo desta forma:
«Não sou brasileiro, nem russo nem chinês
Sou da terra que me diz NÃO eternamente - sou terrivelmente do mundo».
1 Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, editora Nova Aguilar, 1994.
2 Razões de uma Poesia, São Paulo, EDUSP,1994.
3 Idade do Serrote, Rio de Janeiro, Editora Sabiá, 1968.
4 Janelas Verdes, Lisboa, Quasi Edições, 2003.
5 Op. Cit. p. 48
6 Idem, p. 71
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