quarta-feira, 6 de abril de 2011


ANGLO-SAXÓNICOS



A PLETORA DA TRADUÇÃO1


O que teria sido da poesia de língua inglesa sem a personalidade aglutinadora e o trabalho original de Ezra Pound? A interrogação torna-se necessária para avaliar as realizações deste poeta que participou na criação de movimentos literários como o Imagismo e o Vorticismo; que renovou a poesia de Yeats antes de receber o Nobel; fez a revisão exaustiva do Waste Land de T. S. Eliot, e cortou o excessos; o responsável pela publicação do Ulysses de James Joyce; um dos primeiros a divulgar a poesia de Roberto Frost, D. H. Lawrence, William Carlos Williams; a aconselhar Hemingway, a redescobrir Guido Cavalcanti e os poetas provençais; a revelar a poesia chinesa no Ocidente.

A lista poderia prolongar-se, e só ampliaria o contexto de uma vida dedicada inteiramente à poesia. Deve-se toda esta empreitada ao poeta Ezra Loomis Pound, nascido em 1885, no Idaho, Estado Unidos.

Pound foi o autor de genuínas obras-primas da tradução, com o as versões da "canzone" "Donna mi priegha" de Cavalcanti, o poema anónimo anglo-saxão "The Seafarer" ou o poema "Can Chat la Feuilla"2 de Arnaut Daniel -mestre de Dante que o homenageia na Divina Comédia como "il miglior fabbro".

Cathay encabeça os exemplos da verve tradutória do poeta e é um dos mais notáveis momentos do seu ofício. Foi publicado em 1915 em Londres , dois anos após a mulher do sinólogo Ernst Fenollosa ter confiado ao poeta os manuscritos do marido, que falecera em 1908. Fenollosa teve uma vida singular. Era um provável descendente de Alvarado, tenente de Cortez no México. O pai, um músico virtuoso de Málaga que viajara para Salem, Massachussets. A mãe descendia de navegadores dessa cidade, que viajavam pela China. Fenollosa casou aos 20 anos e partiu para o Japão. Ao regressar, em 1890, era um homem próspero. Mas arruinou a carreira ao fugir com Mary McNeil e levou uma vida de sábio errante. Fenollosa foi o primeiro professor de filosofia ocidental em Tóquio. Trabalhou intensamente, estudou com vários mestres a arte japonesa e a chinesa e escreveu a sua obra ensaística. As suas cinzas repousam no Japão, nas colinas que ladeiam o lago Biwa.

Ao escolher o jovem Ezra Pound para tratar dos documentos, a mulher de Fenollosa acertou no alvo, pois Pound empenhou-se a divulgar a obra do erudito durante toda a vida. Cathay é o primeiro resultado da sua dedicação. Pound baseia-se nos escritos deixados por Fenollosa para traduzir os poemas chineses e apresentar ao público versões que entram em colisão com os princípios dos especialistas. Em 1919, ao tornar-se o editor da Little Review, publica o ensaio que lhe serviu de apoio, "The Chinese written character as a medium for poetry", cumprindo o que prometera à viúva. Pound observa as ideias acerca do ideograma, imprimindo na sua poesia a influência destes fundamentos.

Na obra maior do poeta, Os Cantos, perpassa a marca da China a partir do canto 13;depois retorna ao tema dos imperadores de Cathay - cantos 51 a 61 - e reaparece no final da obra - cantos 98 e 99 -, que são um resumo da ética confunciana. Cathay é por isso mesmo um vector não de mudança, mas de aprefeiçoamento da técnica e da estética poundiana.

Segundo a divisão de Pound, o poema é composto por Fanopeia (a imagem), melopeia (a música) e Logopeia (as ideias movendo-se entre as palavras). De acordo com esse esquema, ele acreditava que os poetas chineses tinham sido mestres e inventores ao promoverem toda uma coreografia estilística articulada pela condensação, a combinação e a objectividade.

Pound carregou consigo o estigma de ter sido um tradutor inconsequente. A sua atitude subverteu os cânones do academismo. A visão dogmática dos sinólogos desconfiava dos seus intuitos. O prodígio das traduções de Pound é um facto. Cathay é a ponta do iceberg de uma obra que palmilhou caminhos inexplorados para o tradutor, assim como redescobriu expressões vitais na poesia das mais diversas línguas do mundo. A percepção poundiana ramificava-se em todas as direções, ligava-se a tudo o que contribuísse para o desenvolvimento dos processos poéticos; retransmitia depois o essencial nos ensaios que deram a volta no parafuso da crítica, através das traduções inovadoras - "make it new" - e dos poemas inigualáveis que produziu. Pound foi a "antena da raça". Foi Homero, Dante, Arnaut Daniel, Laforgue, o anónimo anglo-saxão, sem nunca ter deixado de ser ele mesmo.


***


Apesar de ter chegado a Londres em 1907, Pound dera início à sua produção poética nos Estados Unidos. Todavia, publica os primeiros livros na Europa. O período londrino caracterizar-se-á pela vilegiatura em várias frentes literárias. Em pouco tempo a personalidade incisiva do poeta será um ponto de atração que irá conquistar a admiração unânime. O jovem poeta dirige revistas literárias, promove edições de autores estreantes e divulga tradições desconhecidas do grande público.

A Lume Spento surge em Londres, em 1908 -só seria reeditado em 1965, numa edição a cargo de James Laughlin, onde se vislumbra uma foto de San Trovaso, Veneza, onde o poeta residiu. O livro exibe um apêndice com material encontrado, e que ficou conhnecido como San Trovaso sketch-book, um grupo de poemas inéditos de Pound.

Constata-se nessa obra inicial, a dicção intercambiada por tons solenes e coloquiais, ritmos aprimorados sob a tensão de quem detinha o domínio e o conhecimento das tradições. É o testemunho da génese do poeta, que em breve começaria a compor um dos poemas centrais do século XX, Os Cantos.

A obra adquire maior relevância, porque alberga os registos que foram elaborados posteriormente. Despontam as "máscaras" que o poeta ostentou ao longo da obra. Poemas como "Cino -Italian campagna 1309, the Open Road", "In Tempore Senectutis" ou "Oltre la Torre: Rolando", "Salve o Pontifex!". Contudo, um dos poemas mais emblemáticos deste conjunto é "Na Audiart - que ben vols mal", em que Pound, inspirado por sua vez num poema de Bertrand de Born, escreve uma canção de amor alternando o texto com plasticidades do poeta provençal. De facto, Pound orquestrou uma incrível bateria de recursos. O poeta exumou do esquecimento uma variedade de expressões que foram recolocadas em circulação, salvando-as do esquecimento a que estariam relegadas até hoje e compôs assim esta verdadeira sinfonia poética chamada Os Cantos.


1 Cathay, trad. Gualter Cunha, Lx, Relógio d'Água, 1995; publicado no jornal Expresso.

2 Ver Poesia de Ezra Pound, vários tradutores, Hucitec, São Paulo, 1983; ABC da Literatura, trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes, Cultrix, SP, 1977.

3 Os Cantos, trad. José Lino Grünewald, RJ, Nova Fronteira, 1986.

4 Lume Spento, NY, New Directions, 1965.



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