sexta-feira, 18 de março de 2011



O TRANSE DA LINGUAGEM1

Publicado antes do lançamento das obras completas de Henri Michaux pela Plêiade, À Distance atesta a presença viva deste grande encantador de serpentes da literatura. Quem estiver à espera de versos que passem um verniz na língua francesa, afaste-se então deste volume, pois aqui encontrará a rebeldia e a estética.
"Abordar a literatura com desconfiança e desagrado; ver o ato de escrever como involuntário, compará-lo não à haute magie de Sar Peladan, mas a uma forma inferior nascida do desespero e da astúcia bárbara, tais são, se não propriamente atributos de Michaux, pelo menos os sinais da sua presença"2. Ei-lo resumido de maneira magistral por Richard Elmann, o insuperável biógrafo de Oscar Wilde e James Joyce.
Parece estranho, à partida, que o autor de páginas argutas sobre Yeats, o crítico atento de Wallace Stevens invocasse um autor distante do seu universo literário predileto. É um pormenor que enriquece o caldeirão bibliográfico sobre Michaux, alvo tanto da admiração como das críticas mais disparatadas sobre a sua obra; capaz de reunir o assombro sincero ou o ódio mais loquaz, como os detractores que o saudaram no início dos anos 20, afirmando que os seus textos não eram literatura e a língua usada não era francês.
Michaux detinha um estilo denso, multifacetado, exprimia-se através de uma sintaxe estranha a saltar constantemente entre os tempos coloquiais ou a servir-se de gírias e cadeias de bizarrias fonéticas e vocabulares sem sentido aparente. Os grupos de órgãos sonoros e as repetições frequentes não funcionam apenas como impulsos combinatórios, os territórios imaginários do poeta articulam-se movidos pela máquina da deambulação. As viagens que o poeta realizou serviram como suporte para as experiências que fez, e ampliadas com o uso da mescalina durante a década de 50.
Para o poeta não é o autor que interessa, mas o efeito do poema que liberta, transfere e revive a experiência do "exorcismo" poético, a oscilar entre a prosa e a poesia, entre a unificação dos sentidos e a ruptura da realidade:

"exaltée à la destruction, cette mer de cyclone déferle sur notre capitale populeuse
mais non inquiète, jamais prise au dépourvu"3

Esta "tensão insuportável" traduz-se na percepção clara dos poderes mágicos da literatura. A escrita realiza-se pela libertação dos dogmas do quotidiano, das grades cerceadoras da visão do mundo e dos regimes abstractos das deficiências da comunicação humana. Michaux quer decifrar essa parcela ínfima que divide os enigmas. A sua insubmissão irrevogável procura a libertação destes limites para erguer "num instante sobre a minha diarreia" a "catedral erecta e insuperável" da sua "anti-poesia" através de personagens alucinatórios e cenários misteriosos e violentos:

"Quelque part, quelq'un renaît insecte, se nourrissant
se nourrisant d'excréments tout le jour, ses antennes trempant dans la
substance fétide; essayant de se souvenir d'une vie antérieure, malgré lui,
il songe à une future quand les excréments seront plus copieux et plus
uniformément répandus de manière qu'il y en ait pour tous"4

O poeta reinstala a poesia numa outra realidade "passant du monde de la passion au monde de l'horreur", como bem viu André Gide: "Ele provoca-nos intuitivamente, tanto a estranheza das coisas naturais, como a naturalidade das coisas estranhas"5.
Henri Michaux nasceu em Namur, em 1899. A chegada a Paris, em 1924, e os contactos com Max Ernst, André Masson, Paul Klee e Dalí, permitiram-lhe experimentar a pintura. Após a viagem pela América Latina, a bordo de um cargueiro, regressou à França e deixou-se envolver pela força tentacular de Lautréamont. O reconhecimento sobreveio durante a Segunda Guerra Mundial, quando Gide pronuncia uma conferência intitulada "Découvrons Henri Michaux".
Mas o poeta não se deixou enfeitiçar pelo esplendor fugidio da fama, manteve a distância delimitada pela angústia e a contundência do sarcasmo, reescrevendo as linhas mestras da sua obra. Michaux, segundo propôs René Bertelé, é "un poète qui se situe mal. Un poète qui n'est pas situe - parce que lui-même n'a pas voulu se situer (partant, se définir et se limiter). Un homme sans boussole, sans carte et sans béquilles"6.

1 À Distance, Paris, Mercure de France, 1997; publicado no jornal Expresso.
2 Ao longo do Riocorrente, SP, Cia das Letras, 1991.
3 op. Cit., p. 15
4 Citado por Richard Elmann.
5 Henri Michaux, Paris, Séghers, 1965.

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