quinta-feira, 24 de março de 2011


O CORPO E A ESCRITA1

É lícito concordar com a premissa de que a França fabrica um poeta de relevo a cada década, embora não tenha reproduzido o efeito Baudelaire-Mallarmé-Rimbaud.
Após a constelação de talentos surgidos nas sucessivas vanguardas que alargaram os horizontes literários - que inclui nomes como Apollinaire, Blaise Cendrars, Paul Valéry, André Breton, só para citar alguns -, a França não voltou a dotar a literatura com um prodígio capaz de rivalizar com estes poetas que rebentaram na primeira metade do século XX. Se excluirmos René Char, Edmond Jabès - que é egípcio de nascimento - e Yves Bonnefoy, a poesia francesa parece ter entrado em recesso desde essa altura.
Depois da Segunda Guerra mundial, a geração que se seguiu revelou autores como Philippe Jacottet, André du Bouchet e Jacques Dupin, cuja contribuição para o rejuvenescimento foi decisiva, mas as suas obras não conseguiram permear o topo alcançado anteriormente.
O livro Extractos do corpo veio a lume no seguimento deste processo. Bernard Noël publica-o em 1958. Em seguida entrou num período marcado pelas sequelas provindas das guerras coloniais francesas, que impuseram o silêncio adoptado pelo autor. O seu nome voltou a a criar atritos com a publicação de O Castelo da Ceia2, em 1973, um romance proibido pela justiça francesa por atentado contra os costumes.
Estava em causa a resposta aos factos presenciados pelo autor, colmatados agora sob o erotismo radical, que lhe valeu o processo de que foi alvo. Noël imprime um tom impetuoso nessa parábola violenta de um homem a viver experiências extremas que incluem violações por animais e toda espécie de relações sexuais. Foi a forma encontrada pelo poeta para criticar a opressão do poder. A denúncia de Noël acirra-se no capítulo X, quando não se coíbe de se inspirar e transfigurar os discursos proferidos por De Gaulle.
De facto, a poesia de Noël pode ser isolada num território específico. Ele recupera a trasngressão formal de Mallarmé, dispositivos imagéticos de Baudelaire e a densidade áspera de um Michaux, por exemplo. A manipulação do corpo como metáfora sinaliza o fluxo do seu discurso:

"e na espessura do meio-dia
as coisas entram-me no corpo
o epaço arregaça-se
dentro torna-se imenso
(...)
tocam-se as convexidades
do corpo e do céu
e eu durmo como um deus que regressou à garganta do pai"3

O poeta quer desagregar a ordem e erguer uma nova realidade:

"A desordem avança tão depressa que já não consigo saber por onde começou
(...)
Dir-se-ia
que uma pirâmide branca se revirou na minha barriga para a empalar. A
/ garganta endureceu-se.
Enerva-se à altura da úvula, e em todo o corpo há um grande refluxo(...)
/Talvez por reação, a
espinal medula volta a ser um raio luminoso que me fascina o olho"4

Emanam imagens vigorosas, contornos escatológicos, a busca de uma desintegração metafórica e a interrogação materializada no corpo da linguagem. Pode-se dizer que os experimentos de Noël se inscrevem numa representação intensa, como se a distorção colérica de Francis Bacon explodisse no interior do poema:

"Da barriga à garganta, esticou-se o espaço. A pele cresceu. Atado a mim
mesmo, sugo o meu interior, esvazio-me em mim. Mais tarde, o osso
vertebral mineraliza as articulações todas. O olhar gela. O
sangue porém voltará a subir pelas represas arteriais, e fará crescer na pele
o fungo cor de rosa de um sorriso"5

Burroughs também se manifesta nestas figurações:

"à medida que o buraco se estende para baixo
aparecem-me no corpo máquinas estranhas
e em primeiro lugar o olho que me rebentou acima do nariz e me
faz duvidar do valor dos meus olhos
condensação do olhar (...)
triângulo cujas paredes incandescentes traçam no cérebro uma
queimadura drenante"6

A pregnância degenerativa que conduz o sentido combina a textura carnal e um corpo textual que habitam o poema:

"memória
doença cuja lesão é difusa

alguém pousa o olho
e sara o tempo

a noite escorre ao lado
branqueada pelo sono das coisas
e o céu em círculo
coalha-se

acabado"7

O poeta fixa-se numa região sem revelá-la ao leitor. Todas as tentativas de ligá-lo a uma tendência são nulas, a instransitividade desta poesia confirma a sua relevância, e a defesa visceral de uma orgânica interior:

"teríamos nós carreado o reflexo dum reflexo
ou iríamos rumo ao análogo

já não ter fome não anula a fome
e nomear as coisas não as firma
(...)

alguns queriam a neve para se unirem ao silêncio
e outros um falar
que cifrasse todo o visível numa só palavra

mas o olho que acordava uma vez mais
tanto reflectia o fim como o começo

alhures
até as pedras tinham sono"8

Estava certo Claude Esteban9 ao afiançar que os poemas de Noël se apresentam como crítica da poesia. O desenvolvimento da sua obra lançou-o na confluência reflexiva de uma dicção em que a legibilidade alinhada em torno da inquirição corporal cedeu lugar à corporificação da escrita através da metalinguagem.

1 Extractos do corpo, trad. Laura Lourenço e Marc-Ange Graff, Lx., Fenda ed., 1997, publicado no jornal Expresso.
2 O Castelo da Ceia, idem, idem.
3 Op. Cit., p. 8
4 idem, p. 25
5 Idem, p. 37
6 idem, p. 7
7 idem, p. 77
8 Idem, p. 92

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