
quarta-feira, 30 de março de 2011

quinta-feira, 24 de março de 2011

O CORPO E A ESCRITA1
É lícito concordar com a premissa de que a França fabrica um poeta de relevo a cada década, embora não tenha reproduzido o efeito Baudelaire-Mallarmé-Rimbaud.
Após a constelação de talentos surgidos nas sucessivas vanguardas que alargaram os horizontes literários - que inclui nomes como Apollinaire, Blaise Cendrars, Paul Valéry, André Breton, só para citar alguns -, a França não voltou a dotar a literatura com um prodígio capaz de rivalizar com estes poetas que rebentaram na primeira metade do século XX. Se excluirmos René Char, Edmond Jabès - que é egípcio de nascimento - e Yves Bonnefoy, a poesia francesa parece ter entrado em recesso desde essa altura.
Depois da Segunda Guerra mundial, a geração que se seguiu revelou autores como Philippe Jacottet, André du Bouchet e Jacques Dupin, cuja contribuição para o rejuvenescimento foi decisiva, mas as suas obras não conseguiram permear o topo alcançado anteriormente.
O livro Extractos do corpo veio a lume no seguimento deste processo. Bernard Noël publica-o em 1958. Em seguida entrou num período marcado pelas sequelas provindas das guerras coloniais francesas, que impuseram o silêncio adoptado pelo autor. O seu nome voltou a a criar atritos com a publicação de O Castelo da Ceia2, em 1973, um romance proibido pela justiça francesa por atentado contra os costumes.
Estava em causa a resposta aos factos presenciados pelo autor, colmatados agora sob o erotismo radical, que lhe valeu o processo de que foi alvo. Noël imprime um tom impetuoso nessa parábola violenta de um homem a viver experiências extremas que incluem violações por animais e toda espécie de relações sexuais. Foi a forma encontrada pelo poeta para criticar a opressão do poder. A denúncia de Noël acirra-se no capítulo X, quando não se coíbe de se inspirar e transfigurar os discursos proferidos por De Gaulle.
De facto, a poesia de Noël pode ser isolada num território específico. Ele recupera a trasngressão formal de Mallarmé, dispositivos imagéticos de Baudelaire e a densidade áspera de um Michaux, por exemplo. A manipulação do corpo como metáfora sinaliza o fluxo do seu discurso:
"e na espessura do meio-dia
as coisas entram-me no corpo
o epaço arregaça-se
dentro torna-se imenso
(...)
tocam-se as convexidades
do corpo e do céu
e eu durmo como um deus que regressou à garganta do pai"3
O poeta quer desagregar a ordem e erguer uma nova realidade:
"A desordem avança tão depressa que já não consigo saber por onde começou
(...)
Dir-se-ia
que uma pirâmide branca se revirou na minha barriga para a empalar. A
/ garganta endureceu-se.
Enerva-se à altura da úvula, e em todo o corpo há um grande refluxo(...)
/Talvez por reação, a
espinal medula volta a ser um raio luminoso que me fascina o olho"4
Emanam imagens vigorosas, contornos escatológicos, a busca de uma desintegração metafórica e a interrogação materializada no corpo da linguagem. Pode-se dizer que os experimentos de Noël se inscrevem numa representação intensa, como se a distorção colérica de Francis Bacon explodisse no interior do poema:
"Da barriga à garganta, esticou-se o espaço. A pele cresceu. Atado a mim
mesmo, sugo o meu interior, esvazio-me em mim. Mais tarde, o osso
vertebral mineraliza as articulações todas. O olhar gela. O
sangue porém voltará a subir pelas represas arteriais, e fará crescer na pele
o fungo cor de rosa de um sorriso"5
Burroughs também se manifesta nestas figurações:
"à medida que o buraco se estende para baixo
aparecem-me no corpo máquinas estranhas
e em primeiro lugar o olho que me rebentou acima do nariz e me
faz duvidar do valor dos meus olhos
condensação do olhar (...)
triângulo cujas paredes incandescentes traçam no cérebro uma
queimadura drenante"6
A pregnância degenerativa que conduz o sentido combina a textura carnal e um corpo textual que habitam o poema:
"memória
doença cuja lesão é difusa
alguém pousa o olho
e sara o tempo
a noite escorre ao lado
branqueada pelo sono das coisas
e o céu em círculo
coalha-se
acabado"7
O poeta fixa-se numa região sem revelá-la ao leitor. Todas as tentativas de ligá-lo a uma tendência são nulas, a instransitividade desta poesia confirma a sua relevância, e a defesa visceral de uma orgânica interior:
"teríamos nós carreado o reflexo dum reflexo
ou iríamos rumo ao análogo
já não ter fome não anula a fome
e nomear as coisas não as firma
(...)
alguns queriam a neve para se unirem ao silêncio
e outros um falar
que cifrasse todo o visível numa só palavra
mas o olho que acordava uma vez mais
tanto reflectia o fim como o começo
alhures
até as pedras tinham sono"8
Estava certo Claude Esteban9 ao afiançar que os poemas de Noël se apresentam como crítica da poesia. O desenvolvimento da sua obra lançou-o na confluência reflexiva de uma dicção em que a legibilidade alinhada em torno da inquirição corporal cedeu lugar à corporificação da escrita através da metalinguagem.
1 Extractos do corpo, trad. Laura Lourenço e Marc-Ange Graff, Lx., Fenda ed., 1997, publicado no jornal Expresso.
2 O Castelo da Ceia, idem, idem.
3 Op. Cit., p. 8
4 idem, p. 25
5 Idem, p. 37
6 idem, p. 7
7 idem, p. 77
8 Idem, p. 92
sexta-feira, 18 de março de 2011

O TRANSE DA LINGUAGEM1
Publicado antes do lançamento das obras completas de Henri Michaux pela Plêiade, À Distance atesta a presença viva deste grande encantador de serpentes da literatura. Quem estiver à espera de versos que passem um verniz na língua francesa, afaste-se então deste volume, pois aqui encontrará a rebeldia e a estética.
"Abordar a literatura com desconfiança e desagrado; ver o ato de escrever como involuntário, compará-lo não à haute magie de Sar Peladan, mas a uma forma inferior nascida do desespero e da astúcia bárbara, tais são, se não propriamente atributos de Michaux, pelo menos os sinais da sua presença"2. Ei-lo resumido de maneira magistral por Richard Elmann, o insuperável biógrafo de Oscar Wilde e James Joyce.
Parece estranho, à partida, que o autor de páginas argutas sobre Yeats, o crítico atento de Wallace Stevens invocasse um autor distante do seu universo literário predileto. É um pormenor que enriquece o caldeirão bibliográfico sobre Michaux, alvo tanto da admiração como das críticas mais disparatadas sobre a sua obra; capaz de reunir o assombro sincero ou o ódio mais loquaz, como os detractores que o saudaram no início dos anos 20, afirmando que os seus textos não eram literatura e a língua usada não era francês.
Michaux detinha um estilo denso, multifacetado, exprimia-se através de uma sintaxe estranha a saltar constantemente entre os tempos coloquiais ou a servir-se de gírias e cadeias de bizarrias fonéticas e vocabulares sem sentido aparente. Os grupos de órgãos sonoros e as repetições frequentes não funcionam apenas como impulsos combinatórios, os territórios imaginários do poeta articulam-se movidos pela máquina da deambulação. As viagens que o poeta realizou serviram como suporte para as experiências que fez, e ampliadas com o uso da mescalina durante a década de 50.
Para o poeta não é o autor que interessa, mas o efeito do poema que liberta, transfere e revive a experiência do "exorcismo" poético, a oscilar entre a prosa e a poesia, entre a unificação dos sentidos e a ruptura da realidade:
"exaltée à la destruction, cette mer de cyclone déferle sur notre capitale populeuse
mais non inquiète, jamais prise au dépourvu"3
Esta "tensão insuportável" traduz-se na percepção clara dos poderes mágicos da literatura. A escrita realiza-se pela libertação dos dogmas do quotidiano, das grades cerceadoras da visão do mundo e dos regimes abstractos das deficiências da comunicação humana. Michaux quer decifrar essa parcela ínfima que divide os enigmas. A sua insubmissão irrevogável procura a libertação destes limites para erguer "num instante sobre a minha diarreia" a "catedral erecta e insuperável" da sua "anti-poesia" através de personagens alucinatórios e cenários misteriosos e violentos:
"Quelque part, quelq'un renaît insecte, se nourrissant
se nourrisant d'excréments tout le jour, ses antennes trempant dans la
substance fétide; essayant de se souvenir d'une vie antérieure, malgré lui,
il songe à une future quand les excréments seront plus copieux et plus
uniformément répandus de manière qu'il y en ait pour tous"4
O poeta reinstala a poesia numa outra realidade "passant du monde de la passion au monde de l'horreur", como bem viu André Gide: "Ele provoca-nos intuitivamente, tanto a estranheza das coisas naturais, como a naturalidade das coisas estranhas"5.
Henri Michaux nasceu em Namur, em 1899. A chegada a Paris, em 1924, e os contactos com Max Ernst, André Masson, Paul Klee e Dalí, permitiram-lhe experimentar a pintura. Após a viagem pela América Latina, a bordo de um cargueiro, regressou à França e deixou-se envolver pela força tentacular de Lautréamont. O reconhecimento sobreveio durante a Segunda Guerra Mundial, quando Gide pronuncia uma conferência intitulada "Découvrons Henri Michaux".
Mas o poeta não se deixou enfeitiçar pelo esplendor fugidio da fama, manteve a distância delimitada pela angústia e a contundência do sarcasmo, reescrevendo as linhas mestras da sua obra. Michaux, segundo propôs René Bertelé, é "un poète qui se situe mal. Un poète qui n'est pas situe - parce que lui-même n'a pas voulu se situer (partant, se définir et se limiter). Un homme sans boussole, sans carte et sans béquilles"6.
1 À Distance, Paris, Mercure de France, 1997; publicado no jornal Expresso.
2 Ao longo do Riocorrente, SP, Cia das Letras, 1991.
3 op. Cit., p. 15
4 Citado por Richard Elmann.
5 Henri Michaux, Paris, Séghers, 1965.
quinta-feira, 10 de março de 2011

A PALAVRA TRANSATLÂNTICA1
Segundo uma definição lapidar do poeta Murilo Mendes, "O Uruguai é um belo país da América do Sul, limitado a norte por Lautréamont, ao sul por Laforgue, a leste por Supervielle. O país não tem oeste"2. Na ordem inexplicável do destino, a frase regista este misterioso acontecimento que uniu a França e o Uruguai através da obra destes poetas.
De todos eles, só Jules Supervielle assumiu a via transatlântica, sendo reconhecido como um grande divulgador da literatura francesa no seu país de origem, e o mesmo aconteceu em França, em relação à literatura da América Latina.
Poeta, dramaturgo e contista, Supervielle nasceu em Montevideu, em 1884, e faleceu a 16 de maio de 1960, em Paris. Num texto publicado na revista Sur na altura do falecimento do poeta, Jorge Luis Borges explicou um pouco o papel encenado por Supervielle: "Es sabido que la literatura francesa tiende a producirse en función de la historia de esa literatura. Los escritores acatan y enriquecen una tradición o deliberadamente la infringen, lo cual es otra manera de enriquecerla(...) El extravagante no ignora su extravagancia y sabe que esta no será otra cosa que un rasgo en el dibujo secular". É uma síntese perfeita daquilo que Supervielle fez ao longo do seu percurso literário.
Começou a publicar em 1919, frequentando o parnasianismo e o pós-simbolismo vigentes naquele período. Supervielle estava ainda longe do tom angustiado e fúnebre de Gravitations3, ou do humor melancólico que experimentou, numa espécie de retomada da linhagem estabelecida por Jules Laforgue.
Filho único de uma família que chegou a fundar bancos no Uruguai, Supervielle preferia a ascendência familiar de relojoeiros , como referiu mais de uma vez. A sua mudança para França aconteceu após a morte dos pais, e desde então deslocou-se entre a Europa e a América Latina. O seu reconhecimento veio aos 36 anos, quando se aproximou de Jacques Rivière e Valéry Larbaud. A inserção no meio literário francês consolida-se, enquanto troca correspondência com Saint-John Perse, Max Jacob e Rilke. Mas os amigos mais importantes foram Jean Paulhan e Henri Michaux, com quem manteve uma cumplicidade que se prolongou até à morte de Supervielle. É de Michaux a célebre caracterização do poeta franco-uruguaio:"Pour moi, Supervielle sera toujours Guanamiru. Il éclaitait comme un volcan de poésie en perpetuelle fusion".
Da estirpe daquelas fábulas desconcertantes como A cruzada das crianças de Marcel Schwob, O Ladrão de crianças foi publicado em 1926 e define a tensão onírica que pressiona as portas do real, deformando a linearidade do quotidiano. Supervielle libera uma série de alegorias hiperbólicas que acabam por soar como legítimas num mundo de estratégias e dúvidas.
Um coronel de um país longínquo da América Latina, por não ter filhos com a mulher, começa a raptar crianças que vivem numa mansão, distantes da vida que tinham com as famílias verdadeiras. Supervielle não propõe qualquer moral, tudo acontece sem pressão - as crianças aceitam o padrasto-raptor e o novo quotidiano que levam, até um membro insurgir-se contra o coronel. Mas a eficácia ficcional reside sobretudo no modo como Supervielle deixa em suspensão o ardor da sensualidade e da luxúria do coronel e da jovem por quem acalenta um desejo silencioso e submisso. Na verdade, aquilo que aparece subterraneamente é a necessidade de domar os nossos demónios e silenciar os desastres.
Somos todos bizarros num mundo de equívocos, e Supervielle traduziu com fascínio e sobressalto todas estas evidências.
1 O ladrão de crianças, Lisboa, Íman, 2001; publicado no jornal Expresso.
2 Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, 1994.
3 Gravitations, Paris, Gallimard, 1925.
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