sexta-feira, 28 de janeiro de 2011


O SENHOR DOS LABIRINTOS1
Em 1 de outubro de 1898 casavam-se na igreja de Las Victorias, em Buenos Aires,Jorge Guillermo Borges de Acevedo Suárez, o noivo er aum advogado recém-formado, a noiva ujma jovem de vinte e dois anos. Ambos pertenciam a famílias tradicionais , e um ano depois, a 24 de agosto de 1899, nascia Jorge Luís Borges, o escritor que desenhou uma parte do mapa da modernidade do século XX, o criador de todo um universo insólito e mundos regionais com ressonâncias cosmogónicas a invadir as ruas de Buenos Aires.
Pelo lado paterno, Borges herdou a costela da avó Fanny Haslam de Borges que se orgulhava de não ter "uma só gota de sangue escocês, irlandês ou galês". Desde cedo o neto iria demonstrar a sua versatilidade com o idioma de Shakespeare ao traduzir O Príncipe Feliz de Oscar Wilde, com apenas nove anos, e publicado no El País de Montevideu. O mesmo domínio tinha a mãe que aprendeu inglês com a sogra tendo traduzido obras de D. H. Lawrence, Nathaniel Hawthorne, William Saroyan e Melville, chegando a colaborar com Borges nas versões que fez de Virginia Woolf e William Faulkner. Será esta senhora que, a partir dos anos 60, irá acompanhar o filho, já totalmente cego, nas inúmeras viagens que fez pelo mundo.
O pai foi relevante na educação de Borges. Era um homem rectado e compreensivo, cultivava um sarcasmo contido, admirava John Keats e Swinburne, e lia muita filosofia, sobretudo David Hume e Berkeley. Quando Borges completou dez anos, o pai decidiu que era altura de ler passagens de Platão ao filho.
Outro aspecto que o fascinara aos doze anos, a paixão pelos tigres, ficará registado para sempre nos desenhos que fez destes animais que seriam tema recorrente da sua obra. Mas o jovem é fervoroso leitor de Kipling, Mark Twain, H. G. Wells, Charles Dickens e Robert Louis Stevenson. Foi este ambiente culto e elegante que prevaleceu na infância do autor, determinando nas décadas seguintes a essência do seu universo mítico. Em contraponto a estes factos, Borges descobre o mundo "gauchesco" com dez anos, quando a família passa uma temporada na pampa argentina.
Em 1914 o pai resolve encetar uma viagem à Europa para tratar da sua catarata com um médico de Genebra. Mas com o começo da Primeira Guerra Mundial, a família vê-se impedida de regressar. Os Borges resolvem fixar-se na cidade onde os filhos - Norah e Jorge - aperfeiçoaram o francês. Data desta época a descoberta da literatura francesa e o estudo do alemão. Ao todo, a família viveu quatro anos em solo europeu, que ajudaram o escritor a ampliar os seus conhecimentos.
O primeiro contacto de Borges com o Ultraísmo dá-se em 1919, quando a família visita a Espanha, e Borges aproxima-se da tertúlia do Café Colonial, em Sevilha, mas só conhecerá o mentor do movimento, Rafael Cansinos-Asséns, em Madrid. Pouco antes do regresso definitivo, a família viaja até Portugal, onde Borges descobre Camões e visita o Mosteiro do Jerónimos, confundindo o túmulo de Vasco da Gama com o do autor de Os Lusíadas - a homenagem propriamente dita aparecerá num poema de O Fazedor, de 1960.
Quando regressa a Buenos Aires tem 20 anos. A cidade onde nasceu já não era a mesma. Agora o jovem estava apto a assumir o seu destino de escritor, como afirmou na sua Autobiografia: "Aquilo foi algo mais do que um regresso; foi uma redescoberta. Fui capaz de perceber Buenos Aires com avidez e veemência porque havia estado distante durante muito tempo. Se nunca tivesse saído daqui, interrogo-me se teria sido possível vê-la com a emoção e o deslumbramento que agora em mim produzia. A cidade, não toda cidade em si, mas alguns poucos lugares que emocionalmente significavam algo, inspiraram os poemas do meu livro Fervor de Buenos Aires"2.
Em 1922 lança a revista Prisma que foi a base da divulgação dos ideais "ultraístas" na Argentina. Em seguida publica Proa, apaixona-se por Concepción Guerrero e edita o seu primeiro livro. A partir daqui, a mitologia borgesiana vai ampliar-se com o aparecimento de Caderno de san Martín3 de 1929, Evaristo Carriego 4, de 1930, ou Discussão, de 1932.
Borges era uma referência para os grupos que surgiam. Os artigos que publicava nos periódicos mapeavam os mais diversos autores, comentando obras como a de Wilde, a poesia barroca espanhola ou James Joyce, na altura, um ilustre desconhecido para a maioria dos leitores. O olhar interrogativo de Borges dirige-se à essência da alma argentina, apesar de ter sido um crítico feroz de outras realidades do seu país.
Isto parece contradizer o escritor que no final dos anos 20 deixa encantar-se com os tons do tango e da milonga - foi um exímio dançarino que passava as noites a bailar com Victoria Ocampo, musa e figura principal que encabeçou a criação da célebre revista Sur. O escritor deambulava pelos subúrbios de Buenos Aires para ver a realidade que transfere para a sua obra numa transfusão peculiar. Em 1927 faz a primeira das oito operações à catarata, doença que herdou do pai.
Ao reunir os ensaios incluídos em Discussão, Borges expunha a sua capacidade de discorrer sobre incontáveis assuntos como a poesia gauchesca, a cabala, os clássicos ou o cinema, um hábito diário que foi interrompido pelos problemas da visão - admirava Josef Von Sternberg, Chaplin, Buster Keaton e Eisenstein. Era um opositor das dobragens e implacável contra as dobragens de Hollywood.
1938 é o ano da viragem radical da sua obra, ams também trágica a nível pessoal. Logo no início do ano, o pai falece. Em seguida é a vez do suicídio de Leopoldo Lugones, por quem nutria uma devoção de discípulo. Já no fim deste ano, Borges tem o acidente que o deixará à beira da morte, ao machucar-se no vão de uma escada, ficando internado várias semanas. O problema de visão agrava-se e a cegueira é uma fatalidade com a qual conviverá com sabedoria. Alguns meses mais tarde, e após ultrapassar uma crise de loucura, escreve o conto antológico "Pierra Menard, autor do Quixote". É a fase dos contos insuperáveis, publicados em obras como Ficções6 e O Aleph7. Borges dedica-se quase três décadas exclusivamente à prosa, deixando de lado a poesia, à qual retornará em 1960 com O Fazedor8.
Os anos 40 são, sem sombra de dúvida, o período inicial da sua fama. Faz palestras, é traduzido para outras línguas, participa de congressos e mesas redondas, périplo que cumpre acompanhado da sua mãe. Em 1955 é convidado para dirigir a Biblioteca Nacional da Argentina, onde permanece por dezoito anos. Mas a consagração chega com o prémio Formentor, em 1960. Aparecem livros como Elogio da Sombra9, O relatório Brodie10 e O Ouro dos Tigres11, mas a sua curiosidade não diminui, os cursos de literatura anglo-saxónica, a que preside na BNA, conquista os alunos das mais variadas idades. Será uma desats alunas, Maria Kodama, que conhecerá em 1975, quem se tornará sua última companheira.
Borges criou mitologias metafísicas, mundos labirínticos reflectidos numa linguagem cuja elegância lírica é a expressão suprema de uma alquimia literária sem igual. Imagens, metáforas e ritmos fizeram de Borges o ícone do escritor contemporâneo .
Embora não tenha sido bafejado pelo humor dos acdémicos que todos os anos escolhem um autor para o Nobel, Borges tem seu lugar de honra como personagem incontestável da literatura de todos os tempos.
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Apliquemos o rigor da matemática cronológica. A estreia literária de Borges dá-se em 1923 com o livro Fervor de Buenos Aires12, dois anos depois é a vez de Lua Defronte13, e em 1929 Caderno de San Martín14. Contudo, o escritor resolve encerrar a aventura, regressando á poesia com O Fazedor, em 1960, um livro híbrido que agrupa textos em prosa e poemas - é aqui que surge o poema dedicado a Camões. Tudo somado, Borges silenciou a palavra poética por três décadas, pelo meio produziu as obras-primas que se tornaram paradigmas da modernidade.
Este hiato temporal não anulou a voz genésica que o poeta expusera nos primeiros livros. Além disso, os problemas de visão agravam-se após o acidente e fica abalado com o suicídio de um do seus mestres, o poeta Leopoldo Lugones. Borges tinha 39 anos, e continuou a publicar até ao fim da vida.
desde os primeiros livros, o escritor inaugura a absorção do mundo, lançando teias de referências que se ramificam nos breves ensaios, o hermetismo dos contos e os poemas. Tais expressões estão assentadas numa zona dividida entre a lógica anárquica, a erudição visionária e uma astuciosa ironia. A estratégia poética de Borges não se distancia do seu universo ficcional. O escritor propõe-nos realidades imponderáveis que se conjuram num ritmo compacto;
"Porém, a antiga noite é funda como o jarro
de água côncava, aberta a infinitos sinais,
e em canoas, perante as estrelas fatais,
o homem mede o vago tempo com um cigarro"15
A discursividade hierática dos contos é transposta para os poemas seguindo um raciocínio sinuoso que beira o onírico, sem abandonar o tom solene, a percepção elegíaca, a referência evocativa. espalham-se pela sua obra os poemas-homenagens que permitem conhecer uma galeria onde tudo e todos fazem parte de um clã selecto: Joyce, Shakespeare, Espinosa, Swedenborg, Paul Valéry, Virgílio e Homero. E a lista poderia continuar. É o "infinito da literatura" que Maurice Blanchot detectara em Borges, este "homme essentiellement littéraire".
"Ninguém pode escrever um livro. Para
que um livro exista verdadeiramente
Requerem-se a aurora e o poente,
Armas, séculos e o mar que une e separa"16
Borges adaptou vínculos literários universais a uma visão histórica e cultural enraizada num modo particular de entender a literatura. O resultado deste controlo genuíno começou a ser colhido no início dos anos 60. As honrarias multiplicaram-se, e Borges encarnou a vida de viajante infatigável. As suas conferências tinham como alvo os temas preferidos: a cegueira, a cabala, os espelhos e os labirintos.
Sempre pensei que a melhor forma de explicá-lo fora feita, sem querer, numa frase de outro mestre de Borges, Macedonio Fernández: "Escrever é uma forma de não ler, ou de vingar-se por ter lido tanto".

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