sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


- A VOZ DO DELÍRIO1

Embora o acto da escrita em Artaud seja testemunha da sua agonia mental, como em Gérard de Nerval e Hölderlin, foi através desta progressão - entre as ruínas da condição psíquica - que colmatou o 'corpus' de uma obra cujos valores foram postos às avessas, abolindo os limites literários. As obras destes autores reflectem o momento em que a arte atinge o paroxismo dos sentidos e abre as portas da percepção, revelando territórios estranhos à literatura.

Os movimentos artísticos do início do século XX, como o Dadaísmo e o Surrealismo, reactivaram essas zonas de interesse, promovendo a inclusão de tais preceitos nas argumentações estéticas e elegendo alguns nomes do Romantismo e do Simbolismo como antecessores. Tal processo manifestou-se em várias partes do globo, onde os “ismos” emergentes deixaram as suas marcas.

Portugal não ficou alheio à demanda. Percebem-se tanto na poesia de Gomes Leal como na de Ângelo de Lima, a influência do Simbolismo, e a projecção do delírio psíquico que cada uma recebeu. António Gancho seria o terceiro e último representante desta “tríade” singular da poesia portuguesa.

Se em Gomes Leal e Ângelo de Lima a poesia se torna refractária ao Simbolismo fin de siècle, em António Gancho a “sombra” dos processos surrealistas actua com intensidade, sobretudo através da influência de Mário Cesariny e Herberto Hélder. Querer confrontar as causas que levaram a sua escrita assumir tais ressonâncias é tocar num assunto em que o aspecto formal e psíquico acaba por influenciar a leitura da sua obra.

A sua prática não se avizinha dos fundamentos da rêverie fenomenológica de Bachelard, tão-pouco do automatismo escritural e aleatório das vanguardas europeias; está mais próxima da lucidez agonizante de Artaud, ao viver a sua condição patológica de forma radical:

“Faço um poema e nasce uma cidade

invento o conteúdo geográfico das coisas.

Escrevo um nome e nasce Dublin

Porque Dublin escrevi.”2

Se em Gomes Leal há o registo de um decadentismo sangrento - ver “Visão d’Ópio” ou “Nevrose Nocturna”3 -, em Ângelo de Lima o nascimento de uma teurgia delirante - ver “Ocaso”, “Cântico Semi-Rami” ou “Neitha-Kri”4 -, em António Gancho articula-se uma linguagem híbrida feita de definições irracionais e indefinições temáticas. Na sua poesia delineia-se uma espécie de interpolação rítmica que apoia certos poemas:

“caminho puro e são

chanção

coração

sahara

uazara

oasara”5

Continua no «Gaio do Espírito»:

“mas não vês Moscovo não tem mão

acaba onde a questão do ovo

põe moscas em todo lado.

Moscovo, verbo acabado de moscas”6

Enquanto nestes poemas a contenda principal dá-se entre som e sentido, noutros avista-se a reverberação de uma expressividade própria:

“dá-te o poder mágico de transformar as coisas

onde dizes palavra ela abre-te a palavra

e então são todas as palavras do Mundo

que tu vens a conhecer”7

ou:

“E tinhas o brilho duma estrela gravado pelo peito

como se fosse uma tua tatuagem de luz”8

A reunião da obra de Gancho é oportuna, pois deparamos com um discurso onde a imagem começou por ter predomínio. O seu desenvolvimento mostra que essa presença foi cedendo lugar às distorções ortográficas e gramaticais e à profusão dos neologismos.

Quando movimentos, escolas e vagas literárias tão díspares entre si promulgam a abertura do inconsciente, um irracionalismo libertino, convém perguntar então: o que é arte, o que é literatura?

Entretanto, torna-se necessário inquirir mais uma vez: onde se situam a razão e a consciência após a leitura de Blake, Swedenborg, Rimbaud ou Lautréamont?

A linguagem da loucura cria evidências nítidas, como uma parte da poesia de António Gancho. Mas o que é a loucura? “A alma dos loucos não é louca”9, dizia Foucault.

1 O Ar da Manhã, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, publicado no jornal Expresso.

2 Op. Cit., p.41

3 Claridades do Sul, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

4 Poesias Completas de Ângelo de Lima, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991

5 op. cit., p. 58

6 idem, p. 78

7 ibidem, p. 10

8 ibidem, p. 39

9 História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 2ª ed., 1987

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