
HORROR E MEMÓRIA
Ao findar a década de 80, Al Berto publicou O Livro dos Regressos onde encontramos o seguinte verso:
“regressas depois aos corpos e às cidades
enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita
o amargo medo desta década sem paixão”2
A sequência temporal e as circunstâncias pessoais da vida do poeta levaram-no a retomar esta visão com uma mudança de sentido em que o apelo da consciência do tempo invoca os detritos do passado para reactivar um discurso aparentemente saturado. O dizer em que o poeta mergulha e se debate impõe-se com um tom complementar:
“ouço o atlântico uivando de abandono
enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco
na lenta escrita de um diário - depois
fecho o mapa e vou
pela crueldade desta década sem paixão”3
O que, a princípio, surgia como movimento apreensivo, capta agora toda a implacabilidade:
“na fissura deste tempo pestífero
que já não lhes pertence”4
Sem o jorro do confessionalismo das décadas anteriores, dir-se-ia que nos anos 90 o seu processo de escrita acabou por salvar só os pontos nucleares da sua poética. Temáticas como a marginalidade nocturna, a rememoração da infância, a posse e a entrega ao destino, são moderadas pela abjecção intensa, o lirismo elevado ao cansaço:
“quantas áfricas murcharam na boca do amor?
(…)
quantas feras despedaçadas foram comidas ao
/entardecer
quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da
/paixão”5
Horto de Incêndio é, sobretudo, um livro onde a “andeken” erotizada da realidade exerce o travestimento compulsivo de uma escrita crepuscular ferida pelo impacto inesperado da “velocidade desse mesmo tempo” que devora a beleza e a experiência do poema:
“esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema”6
Enclausurado na fragilidade do corpo que denuncia o seu declínio, o sujeito procura regular a memória e a consciência do horror iminente:
“vês no espelho o homem
cuja solidão atravessou quase cinco décadas e
está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse
da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez
(…)
não sei quem é - sei porém que vai afogar-se
naquela superfície clara quando dela se afastar e
abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo
vem ao chamamento
por dentro do clamor da noite”7
Movido ainda com o ardor da permanência, o poeta anseia afirmar a sua imagem projectada nas palavras. O narcisismo feroz dessa poesia dramatiza a contemplação directa da ruína do corpo à procura de si nos vestígios que o passado e o presente deixaram:
“os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou, a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar”8
É nesta luta entre o horror e a memória, a sublimidade efémera e os despojos do seu próprio mundo que o poeta liberta o fluido poético, amparado na brandura grotesca dos factos vividos:
“arquivamos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas”9
Embora esteja no centro da circunvolução do mal, “apesar de tudo”, o impulso do poeta não se detém perante o perigo e a dúvida, as palavras devem testemunhar:
“te escrevo
sentado na parte mais triste do meu corpo
noite dentro
a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã
e os tiros recomecem
e a cinza do cigarro caia no chão
e em mim cresça uma alegria maligna”10
A perdição das cidades impressa na epiderme do poeta é o testemunho inequívoco do que viveu, entrevisto agora com a melancolia anunciada noutros textos, mas Al Berto convoca o distanciamento para metaforizar o pânico silencioso oculto no movimento do mundo:
“mantenho-me de pé e fumo
dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encontramos de mãos enlaçadas à espera
que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
obrigados a vender o corpo já usado
aos insuspeitos violadores de poemas”11
Com Horto de Incêndio, Al Berto conseguiu abolir os excessos a favor da contensão, a certeza em vez da dúvida, e brindou-nos com um dos mais altos momentos da sua poesia:
“para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
(…)
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória”12
1 Horto de Incêndio, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, publicado no jornal Expresso.
2 O Medo, Lisboa, Contexto, 1991.
3 Op. Cit., 54
4 Idem, p. 27
5 Ibidem, p. 70
6 Ibidem, p.22
7 Ibidem, p.59
8 Ibidem, p. 40
9 Ibidem, p. 36
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