sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



HORROR E MEMÓRIA

Ao findar a década de 80, Al Berto publicou O Livro dos Regressos onde encontramos o seguinte verso:

“regressas depois aos corpos e às cidades

enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita

o amargo medo desta década sem paixão”2

A sequência temporal e as circunstâncias pessoais da vida do poeta levaram-no a retomar esta visão com uma mudança de sentido em que o apelo da consciência do tempo invoca os detritos do passado para reactivar um discurso aparentemente saturado. O dizer em que o poeta mergulha e se debate impõe-se com um tom complementar:

“ouço o atlântico uivando de abandono

enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco

na lenta escrita de um diário - depois

fecho o mapa e vou

pela crueldade desta década sem paixão”3

O que, a princípio, surgia como movimento apreensivo, capta agora toda a implacabilidade:

“na fissura deste tempo pestífero

que já não lhes pertence”4

Sem o jorro do confessionalismo das décadas anteriores, dir-se-ia que nos anos 90 o seu processo de escrita acabou por salvar só os pontos nucleares da sua poética. Temáticas como a marginalidade nocturna, a rememoração da infância, a posse e a entrega ao destino, são moderadas pela abjecção intensa, o lirismo elevado ao cansaço:

“quantas áfricas murcharam na boca do amor?

(…)

quantas feras despedaçadas foram comidas ao

/entardecer

quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da

/paixão”5

Horto de Incêndio é, sobretudo, um livro onde a “andeken” erotizada da realidade exerce o travestimento compulsivo de uma escrita crepuscular ferida pelo impacto inesperado da “velocidade desse mesmo tempo” que devora a beleza e a experiência do poema:

“esperas acordado sem sono

que a temperatura da casa funda

com a temperatura incerta do mundo

depois

escreves exactamente isto: o horror dos dias

secou contra os dentes - e rouco

dobrado para dentro do teu próprio pensamento

ferido

atravessas as sílabas diáfanas do poema”6

Enclausurado na fragilidade do corpo que denuncia o seu declínio, o sujeito procura regular a memória e a consciência do horror iminente:

“vês no espelho o homem

cuja solidão atravessou quase cinco décadas e

está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse

da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez

(…)

não sei quem é - sei porém que vai afogar-se

naquela superfície clara quando dela se afastar e

abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo

vem ao chamamento

por dentro do clamor da noite”7

Movido ainda com o ardor da permanência, o poeta anseia afirmar a sua imagem projectada nas palavras. O narcisismo feroz dessa poesia dramatiza a contemplação directa da ruína do corpo à procura de si nos vestígios que o passado e o presente deixaram:

“os poemas adormeceram no desassossego da idade.

fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais

curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me

as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e

nada escrevo.

o regresso à escrita terminou, a vida toda fodida - e

a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar”8

É nesta luta entre o horror e a memória, a sublimidade efémera e os despojos do seu próprio mundo que o poeta liberta o fluido poético, amparado na brandura grotesca dos factos vividos:

“arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas nocturnas”9

Embora esteja no centro da circunvolução do mal, “apesar de tudo”, o impulso do poeta não se detém perante o perigo e a dúvida, as palavras devem testemunhar:

“te escrevo

sentado na parte mais triste do meu corpo

noite dentro

a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã

e os tiros recomecem

e a cinza do cigarro caia no chão

e em mim cresça uma alegria maligna”10

A perdição das cidades impressa na epiderme do poeta é o testemunho inequívoco do que viveu, entrevisto agora com a melancolia anunciada noutros textos, mas Al Berto convoca o distanciamento para metaforizar o pânico silencioso oculto no movimento do mundo:

“mantenho-me de pé e fumo

dentro deste túmulo de incertezas onde

nos encontramos de mãos enlaçadas à espera

que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos

obrigados a vender o corpo já usado

aos insuspeitos violadores de poemas”11

Com Horto de Incêndio, Al Berto conseguiu abolir os excessos a favor da contensão, a certeza em vez da dúvida, e brindou-nos com um dos mais altos momentos da sua poesia:

“para te manteres vivo - todas as manhãs

arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e

o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho

regas o coração e o grande feto verde-granulado

(…)

passa um bando de andorinhões rente à janela

sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo

donde se soltaram as abelhas incompreensíveis

da memória”12

1 Horto de Incêndio, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, publicado no jornal Expresso.

2 O Medo, Lisboa, Contexto, 1991.

3 Op. Cit., 54

4 Idem, p. 27

5 Ibidem, p. 70

6 Ibidem, p.22

7 Ibidem, p.59

8 Ibidem, p. 40

9 Ibidem, p. 36




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