sexta-feira, 8 de outubro de 2010



CARACOL, LAMA E ESTRELAS

A questão do regionalismo na literatura é um tema que ainda hoje se discute entre as hostes literárias brasileiras. Na verdade, o assunto nunca deixou de ser debatido e, regularmente, regressa à ordem dos trabalhos. A discussão persiste desde a Semana de Arte Moderna. Os modernistas foram responsáveis pela implantação das experimentações de vanguarda, e propugnaram a busca de temáticas genuinamente brasileiras. Tais tendências vingaram numa expressão que padecia de demasiadas imposições neoclássicas, parnasianas e simbolistas. A lição libertou a poesia do estrito espaço em que se encontrava, mas também criou modelos que insistem num folclorismo que acaba por traduzir-se numa caricatura mais do que óbvia.

Aqueles que garantiram um estatuto peculiar são bem poucos - o humor melancólico de Manuel Bandeira, ou a epicidade de Jorge de Lima são casos emblemáticos. Na prosa, Guimarães Rosa reina em absoluto, na companhia da escrita seca de Graciliano Ramos. Rosa sobreviveu num mar infestado, mas transitou entre o regional e o universal com a pureza do ineditismo, experimentando, torcendo e reinventando uma linguagem em estado bruto, num processo difícil de repetir.

A poesia do “pantaneiro” - como são conhecidos os habitantes do Pantanal matogrosense - Manoel de Barros desperta sempre estas inquirições, porque vive num espaço similar àquele que outros autores trabalharam. A meu ver, Manoel de Barros é um filho bastardo de Guimarães Rosa, afilhado de Bandeira, e a sua fórmula tem obtido resultados assinaláveis. Enquanto Guimarães sagrava o sertão de Minas Gerais através de torções, contorções e reinvenções praticadas no nervo da língua, Manoel de Barros consagra, também, a região úbere e exótica do interior do Brasil onde nasceu, por via de uma linguagem que parece estar na iminência de penetrar numa realidade caótica.

A sua poesia captura o inominado através da desestruturação sintática, vira o sentido pelo avesso, provocando o cruzamento entre um tropicalismo imagético e linguístico. A coloração diversa da sua poesia resulta num cromatismo de cariz regional que se ampara nas fontes da tradição popular, mas também no surrealismo, nos clássicos da literatura portuguesa, em Lautréamont. Tudo pode existir nesta poesia, é o ”impossível verosímil” aristotélico elevado a um grau extremo.

Este caldeirão de associações origina uma poesia que para o leitor português soa como estranha e mesmo incorrecta em termos semânticos. Os dispositivos característicos de Manoel de Barros causam efeitos surpreendentes ao misturar os significados - como usar os verbos com outras funções:

“Escuto o perfume dos rios”

(…)

“Sei botar cílio nos silêncios”2

ou:

“Sapos desejam ser-me.

Quero cristianizar as águas.

Já enxergo o cheiro do sol.”3

As dimensões reinventadas por Manoel de Barros se realizam como experiência do mundo motivada pela desagregação da linguagem:

“Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças

Não assento aparelhos para escuta

E nem levanto ventos com alavanca.

(…)

Não tenho competências pra morrer.

O alheamento do luar na água é maior do que o meu

O céu tem mais inseto que eu?”4

Como esta poesia está isenta de qualquer tendência linear o seu discurso flui como máximas, ou como murmúrios autónomos:

“Depende da criatura para ter grandeza da sua infinita deserção

A gente é cria de frases!

Escrever é cheio de casca e de pérola.

Ai desde gema sou borra.

Alegria é apanhar caracóis nas paredes bichadas!”5

Observe-se este último verso por onde perpassa uma certa mundividência infantil, e que, de facto, imprime o tom remisso da poesia de Manoel de Barros.

O húmus linguístico desta obra é revolvido a todo instante por imagens sucessivas que não apresentam um nexo causal. A lógica é transtornada pela simbiose entre o sentido, o ser e os objectos que são instilados com novas possibilidades. O poeta reinterpreta a natureza.

Apesar de apresentar uma nervura telúrica que liga estes versos, a poesia de Manoel de Barros é feita de “gags”. Para o leitor isso desperta alguma singularidade, mas quando se conhece a fundo uma tradição literária como a brasileira, o reconhecimento desta disposição transforma-se numa espécie de gaguez elaborada, de contra-sensos verbais, muitas vezes, repetidos à exaustão.

1 O Encantador de Palavras, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2000, publicado no jornal Expresso.

2 Op. Cit., p. 21

3 Idem, p. 32

4 Ibidem, p. 12

5 Ibidem, p. 10



Um comentário:

Vasco Cavalcante disse...

Adorei Jorge, gosto demais do Manoel de Barros, comprei recentemente o livro "Poesia Completa" pela Editora Leya Brasil, na Saraiva, aqui em Belém e estou gostando muito dessa recriação do significado das palavras utilizando o universo da região pantaneira com um olhar inocente/infantil e ao mesmo tempo com uma sapiência, um repensar sobre as coisas, sobre os sentidos. Tua análise aqui no blog foi perfeita. Vou te seguindo aqui. Abraço.