quarta-feira, 13 de outubro de 2010


VIDA E MORTE CABRALINA

Após o falecimento de Carlos Drummond de Andrade, em agosto de 1987, para todos os efeitos o pernambucano João Cabral de Melo Neto ficara como último grande poeta brasileiro vivo. No dia 9 de Outubro de 1999, calou-se a voz enxuta, exacta e síncrona daquele que Vinicius de Moraes chamara de “camarada diamante”. A sua obra é uma das mais arrojadas dos últimos 50 anos. Como o martelar ritmado do ferreiro que provavelmente entreviu em Carmona, Espanha - cantado num poema de Crime na Calle Relator - o ataque cardíaco que o vitimou em sua casa do Rio de Janeiro, foi uma estocada fatal na poesia brasileira.

Nascido em Recife, a 6 de Janeiro de 1920, o poeta passou boa parte da infância no engenho de açúcar do pai, a conviver de perto com a paisagem árida da região, o vento dos canaviais e os homens de mãos coriáceas como o sertão nordestino fustigado pelas secas sucessivas. Pelo lado paterno, o poeta herdou toda uma genealogia literária que surge com António Moraes e Silva, o autor do célebre dicionário, de quem era 4º neto, até o parentesco com Manuel Bandeira e com o sociólogo Gilberto Freyre, seus primos.

Fez a sua formação em Recife e aguardou até aos vinte anos, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1942, onde concorreu para o Itamaraty, ingressando depois na carreira diplomática. É neste ano que publica o seu primeiro livro, Pedra do Sono, uma obra nitidamente influenciada pelo surrealismo. Ao chegar ao Rio de Janeiro, visita Murilo Mendes, contacta com Drummond e fortalece a amizade com Bandeira. Em 1945 aparece O Engenheiro e dois anos depois deixa o Brasil para assumir o seu primeiro posto diplomático em Barcelona. Entre 1947 e 1987, João Cabral viveu fora do Brasil. Neste espaço de tempo, serviu como diplomata em Londres, Sevilha, Marselha, Madrid, Genebra, Dacar, Quito, Tegucigalpa e Porto, entre outras capitais.

Barcelona foi, de certo modo, uma cidade fundamental para os contactos que manteve. É aí que se aproxima do poeta Joan Edoardo Cirlot, em seguida tem o encontro decisivo com o grupo de vanguarda “Dau Al Set”, formado na sua maioria por artistas plásticos. Torna-se amigo de Joan Brossa, Emílio Boadella, Joan Ponç e Antoni Tàpies, além de conhecer o poeta Carles Riba que traduz para o português. Data ainda deste período o encontro com Joan Miró, sobre quem escreve um ensaio, em 1950. A actuação no meio intelectual barcelonês é intensa e resolve fundar uma pequena editora que funciona através de uma prensa manual que o próprio poeta opera. É aí que publica o primeiro livro de sonetos de Brossa, Sonets de Caruixa, enquanto trabalha na redacção dos poemas de Psicologia da Composição e O Cão sem Plumas. A temporada espanhola estender-se-à depois para Sevilha e posteriormente Madrid.

Um aspecto peculiar que se nota na poesia de João Cabral é o paralelismo entre a Espanha e o Nordeste brasileiro que o poeta consolidou na sua obra. E foi de tal forma determinante que em alguns dos últimos livros - Crime na Calle Relator, Sevilha Andando e Andando Sevilha -, agudiza-se o processo.

Em 1950 o poeta é transferido para Londres, onde faz novas amizades, começando a ler com maior acuidade a poesia anglo-saxónica, nascendo a admiração por autores como W. H. Auden, Dylan Thomas e os metafísicos ingleses. Preferia John Donne e George Crabbe, e se desinteressa de Stephen Spender, depois de saber que este poeta traduzira Lorca sem conhecer o espanhol. Nesta época vê-se obrigado a regressar ao Brasil acusado de ter ligações com o comunismo. Aterra no Rio de Janeiro em 1952, sendo suspenso das suas actividades. Aproveita o período e trabalha como jornalista; em 54 consegue ser reintegrado com a intervenção de D. Hélder Câmara junto das autoridades do Itamaraty. Em 56 é-lhe permitido retomar as funções diplomáticas. Dois anos mais tarde segue para Marselha.

No final da década de 50 o poeta publica Duas Águas, a primeira reunião da sua obra poética. João Cabral é considerado nesta altura um dos poetas mais importantes do Brasil. Se tivermos em conta que naquele momento Manuel Bandeira era reconhecido como o grande senhor da poesia brasileira, que Drummond escrevera já alguns dos maiores livros de poesia de língua portuguesa - Claro Enigma e A Rosa do Povo - e Jorge de Lima produzira este poema magnífico que é Invenção de Orfeu, o percurso a seguir por qualquer poeta era longo e difícil. Contudo, João Cabral legitimou a sua dicção através de um tom expressivo em que o sertão e as gentes do nordeste brasileiro accionam a sua palavra poética. Escreve Quaderna que será publicado em Lisboa, em 1958. Dois anos depois, Alexandre O’Neill organiza uma antologia para ser publicada em Portugal.

A sua poesia obtém certa popularidade com a montagem do auto de natal Morte e Vida Severina pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo. Pedem a autorização ao autor, informando-o que o responsável pelas composições será Chico Buarque. O espectáculo é montado, as críticas são entusiasmadas e a peça segue para o festival de teatro de Nancy, na França onde arrebata o prémio de melhor autor. Em 1969 muda mais uma vez de posto diplomático para Assunção, no Paraguai, antes disso toma posse na Academia Brasileira de Letras. Finalmente em 72 vai para o Senegal, agora como embaixador. Aproxima-se do então presidente Léopold Sédar Senghor. Nesta fase, João Cabral aguça a sua poesia com o livro A Escola das Facas, publicado aquando da sua transferência para o Equador, em 1979. Era a época da abertura política brasileira comandada pelo General João Batista Figueiredo. João Cabral tem sessenta anos e uma obra consagrada.

No início dos anos 80 o poeta é recolocado em Tegucigalpa onde finaliza Poesia Crítica. Em 1983 aparece o Auto do Frade, um ano antes fora designado cônsul-geral no Porto. Com a reforma, o poeta decide instalar-se no Rio de Janeiro, e em 1987 casa com a escritora Marly de Oliveira.

Na década de 90 começaram a agravar-se os problemas. Deixou de tomar aspirinas para a dor de cabeça que o afligiu por largos anos; um glaucoma o impede de ler e - ele que só apreciava a leitura e a pintura e odiava música -, resolve abandonar a poesia. Em 92 é galardoado como o Prémio Neustadt, nos Estados Unidos e no ano seguinte recebe o Prémio Camões. Fora contemplado, também, em 95, com o Prémio Rainha Sofia de poesia.

O poeta que escrevera sobre os deserdados sertanejos, as bailarinas andaluzas, os toureiros, o futebol, a aspirina e a própria poesia, segundo testemunho da segunda mulher, estava a rezar quando o enfarte o calou - rápido e fulminante teria dito Drummond. Tinha 79 anos. Como Guimarães Rosa, Heitor Villa-Lobos, Portinari ou Glauber Rocha, João Cabral de Melo Neto tocou na alma de um Brasil áspero, rude e verdadeiro.

**

Dizia o poeta norte-americano Wallace Stevens na introdução de The Necessary Angel2 que “Uma das funções do poeta é descobrir através da sua intuição o que parece ser a poesia para ele num determinado momento. Há-de mostrar aquilo que sente na sua própria poesia através da poesia em si. Ele opera esta função na maioria das vezes sem estar consciente disso, de forma que a exposição das definições enquanto definem o que parece ser poesia para ele, são exposições de poesia e não exposições das definições de poesia”. A aparente complexidade desta afirmação ajudar-nos-á a perceber que João Cabral foi um poeta que expôs sempre a sua poesia sem querer defini-la. Todo grande poeta estabelece parâmetros estilísticos que delimitam o seu raio de acção numa literatura.

São poucos os poetas “inventores” no sentido poundiano da palavra. O autor capaz de criar uma constelação estilística a gravitar com o poder da expressividade, a fixar uma fala, a anexar e transformar uma realidade. Este género de poeta é raro, mas quando define a sua meta e funda a palavra, tudo o que existe à sua volta não permanece o mesmo. João Cabral foi um poeta desta linhagem, pelo menos para a poesia de língua portuguesa. Diz-se, hoje, que um poema é “pessoano”, “herbertiano”, “drummondiano” ou “cabralino” para caracterizar uma voz, uma poética. Isto acontece apenas quando a obra cria uma escala valorizada pela contemporaneidade.

A pregnância axial da poesia de João Cabral exibe um estilo aparentemente fácil, uma exiguidade verbal e a serialização do ritmo que parece não variar. Para Cabral a palavra deve ser usada com rigor. Este poeta desloca adjectivos com precisão, enriquecendo a musicalidade original da sua condição de nordestino. Partindo de um primeiro livro em que as imagens expressam uma subjectividade acentuada, seguiu uma via distinta. Opta aos poucos por expurgar da linguagem todo o excesso, sobrepondo um construtivismo formal. Cabral trabalha à superfície, mas a sua palavra é como a perfuratriz que incide no interior da rocha. Radicalmente solar na sua beligerância contra a discursividade lírica, é no entanto essencialmente nocturna na sua atitude reflexiva.

A elaborada sintaxe de João Cabral consegue mover-se na grade estilística dos versos de oito sílabas, actuando entre o erudito e o popular, entre a concisão e a narratividade. Como a figura seca e rija dos nordestinos, a sua poesia apresenta contornos que se polarizam em dois territórios, a página do dizer do sertão e a outra suposta página da interrogação poética. A linguagem é descarnada, sem perder a sua materialidade, “carne seca”, diria o poeta; o rio e o sertão, a escrita e o silêncio.

O miolo - ele diria o “caroço” - da sua poesia se situa a partir de O Engenheiro, continua em O Cão sem Plumas, Uma Faca só Lâmina, recupera-se em Dois Parlamentos e Serial, para desembocar com genialidade em Educação pela Pedra, A Escola das Facas e Poesia Crítica. Agrestes3 foi o seu último grande livro.

Utilizando uma metáfora, diria que cada literatura é como uma cordilheira, há declives intermináveis, abismos, montes aprazíveis e picos inexpugnáveis. Com quase toda a certeza, creio que João Cabral, no caso da literatura de língua portuguesa, chegou a um dos pontos mais elevados.

1 Texto escrito na altura da morte do poeta, e publicado no jornal Expresso.

2 The Necessary Angel, New York, Random,1951.

3 Agrestes, Rio de Janeiro, 1985, Nova Fronteira, reed. in A Educação pela Pedra e depois, Rio de Janeiro, N. F.1997.




Nenhum comentário: