segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A serena desesperada






Nascida no Rio de Janeiro em 1901, Cecília Meireles estreou-se com Espectros (1919), um livro onde o tom parnasiano influenciava a sua escrita, daí a recusa de apresentá-lo na primeira reunião da sua poesia. Perdera cedo os pais e os irmãos, ficando sob a tutela da avó, D. Jacinta Garcia Benevides, uma açoriana que marcou para sempre a vida da autora. A outra personagem determinante fora o marido, o artista gráfico português Fernando Correia Dias, colaborador da Águia, entre outras revistas que animaram a cena literária das primieras décadas do século XX, em Portugal.
Casaram-se no início dos anos 20, e deve-se a Correia Dias o contacto de Cecília com muitos poetas e intelectuais portugueses daquela altura. Visitou Portugal em 1934, encetando uma ampla ronda de encontros, conferências e viagens.
Com a publicação de Viagem, em 1939, Cecília obteve a consagração unânime. Em Portugal, há muito que frequentava as páginas literárias ao atrair a atenção de críticos como José Osório de Oliveira. No Brasil emparelhava o reconhecimento dos seus coetâneos com o Prémio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, que galardoava pela primeira vez uma mulher. Cecília demarcara um espaço próprio, distinto daquele que os modernistas brasileiros defendiam. A autora gravara finalmentea sua impressão digital na história da poesia de língua portuguesa, da qual seria uma referência até à sua morte, em 1964.
No livro Conhecimento de Poesia2, Vitorino Nemésio assegura Cecília era "ao mesmo tempo uma pessoa profundamente inspirada e um estilista criado em todos os estilos, que se casaram no seu. Grande oficial do seu ofício - esta senhora, que não é uma 'femme de lettres', mas um escritor autêntico, é capaz de falar pertinente e freudianamente do andrógino, sem perder pé do poema, e toca em todos os campos por onde a sua poderosa inspiração forrageia com precisão e a propriedade de um humanista que libou o mel de Himeto"3. Apesar do tom superlativo, Nemésio roça alguns dos traços que delineiam a poesia da autora. O estilo hábil e diáfano concentra uma flexibilidade estilística que recolhe todo o género de expressões, distribuindo tais sentidos em parcelas discretas por toda a sua obra. Cecília soube manobrar uma máquina aparentemente complexa: algo de Jorge de Lima de "Anunciação e Encontro de Mira-Celi" repercute em:

"Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento
(...)
E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão"4

e em Canção parece actuar o tom e a sageza de Manuel Bandeira de Consoada:

"Depois tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas"5

Encontramos um exemplo particularíssimo da sua percepção expansiva no poema antológico "2° momento da rosa", do livro Mar Absoluto:

"e a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!"6

antecipando o poema de Jorge Luís Borges, "Una rosa y Milton":

"Ó blanca rosa de un jardín borrado
deja magicamente tu pasado
inmemorial y en este verso brilla
oro, sangre o marfil o tenebrosa
como en sus manos, invisible rosa"7

São apenas núcleos expressivos que se conjugam com a profunda consciência da tradição, prolongando-se depois para outras expressões literárias que a autora pesquisou como a poesia hebraica, a chinesa e a indiana, sem esquecer a antologia organizada por ela, Poetas de Portugal, publicada em 1944.
A antologia dada à estampa, foi seleccionada pela própria autora, em 1963. Apresenta uma ampla mostra da sua obra, começando por Viagem, passando por outros livros fulcrais como Romanceiro da Inconfidência, o clima etéreo de Elegia, Retrato Natural, Doze Noturnos de Holanda. É sem dúvida a melhor introdução da sua obra.

1- Antologia Poética, Lisboa, Relógio D'Água, 2003; publicado no jornal Expresso.
2- Viagem, Lisboa, Editorial Império, 1939.
3- Conhecimento de Poesia, Lisboa, INCM, 1997.
4- op. cit., p. 21
5- idem, p. 23
6- ibidem, p.70

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