UMA FEBRE DERRADEIRA1
para Carol
Sylvia Plath é herdeira directa de uma tradição da poesia norte-americana que dá início com a noiva branca de Amherst, Emily Dickinson, continua com Marianne Moore e Elizabeth Bishop. Com a morte de Sylvia, o processo foi interrompido. Nos seus breves 31 anos deixou-nos uma obra poética que não é extensa, um romance, um diário e alguma correspondência. O pouco que restou alcançou um vértice genuíno.
Era uma americana típica dos anos 50, que jogava basquetebol e adorava participar em concursos literários. Alta, esguia e ruiva, uma depressão crónica trespassou esta mulher que tentou o suicídio aos 21 anos. Após um tratamento psiquiátrico, regressou aos estudos e começou a colaborar com maior regularidade em diversas revistas. Conheceu o poeta inglês Ted Hughes, em 1956, casaram-se seis meses depois. O seu reconhecimento aumentou com a publicação de The Colossus and other poems2, em 1960. No outono de 1962, o casal separou-se . O romance The Bell Jar3 saiu em janeiro de 1963 com o pseudónimo de Victoria Lucas, e discorre sobre a formação de uma adolescente em que os laivos biográficos preenchem a narrativa.
Na madrugada de 11 de fevereiro de 1963, levantou-se, preparou uma bandeja com o pequeno-almoço e colocou-a no quarto dos filhos; seguiu para a cozinha onde vedou as portas, ligou o gás e pôs a cabeça no forno. Foi o começo da lenda Sylvia Plath.
Os poemas de Ariel foram escritos nos últimos meses de vida e representam o confronto entre ela e o mundo. Editado em Londres, em 1965, Hughes não respeitou a ordem estabelecida pela autora, uma atitude comum do ex-marido que se envolveu ainda em batalhas judiciais contra os biógrafos e os jornalistas que devassaram as relações do casal. Na época mais crítica, Sylvia trabalhou sem cessar, não conseguia comer nem dormir e tinha febres altíssimas;
"Será que o meu calor não te atordoa? Nem a minha luz?
A sós comigo sou uma camélia enorme
a brilhar e a ir e vir, a cada renascer"
Tomava pílulas para dormir, quando o efeito passava, punha-se a escrever até ao despertar dos filhos. Os poemas tornaram-se verdadeiros "clássicos". Consciente da sensibilidade frágil que a empurrava para o abismo, entregou-se à clausura do corpo destituído de escudos contra a opressão do real, e interpretava esta contenda numa síntese final perturbadora. A atmosfera em que pairam os poemas reflecte o limite onde havia chegado:
Onde os teixos sopram como hidras,
a árvore da vida e a árvore da vida
a libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objectivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor,
o sacrifício absoluto."
A táctica de Sylvia simula uma realidade caricaturada pelo sarcasmo pessimista e a fluidez trágica das imagens:
Só tenho 30 anos.
E como os gatos sete vidas para viver.
(...)
Morrer é uma arte, como outra coisa qualquer.
E eu executo-a excepcionalmente bem."6
Os poemas fazem um balanço, captam os últimos momentos de uma vida roída por dramas, como em "Senhora Lázaro" em que as tentativas de suicídio são o fio condutor; ou no poema "Golpe", escrito após a separação, cujo contorno metafórico amplia ironicamente o facto ocorrido. O quotidiano de mãe, mulher e poeta se unem e formam o núcleo da sua busca temática. Ao activar estes elementos, acaba por acorrentar a figura do pai à do ex-marido. A contundência de "Paizinho" encadeia esse desejo num dos poemas mais poderosos da sua obra. Foi alvo de vários níveis de leitura. George Steiner viu-o como o "Guernica da poesia moderna"7. Seamus Heaney tinha uma interpretação ambígua: "Ainda que possamos reconhecer que um poema como este é um 'tour de force' notável, e ainda que possamos compreender ou recusar a sua violência e o carácter vingativo à luz das relações filiais e maritais da escritora, continua, apesar de tudo, a misturar as circunstâncias biográficas e invade com permissividade a história das dores de outras pessoas, por essa razão abusa simplesmente do seu direito à nossa simpatia"8.
A reacção do Nobel irlandês foi suscitada pela associação que a autora fez do pai e de Ted Hughes como espectros de um fantasma nazi. Não há excessos nas metáforas de Sylvia Plath, já que o seu mundo é habiado por emoções sombrias e uma agudez verbal inesperada, como no poema "Medusa", quando Sylvia procura a mãe como interlocutora para um diálogo, à partida, impossível:
"Não vou aceitar nenhum bocado do teu corpo,
garrafa onde vivo,
sinistro Vaticano.
Estou farta de sal quente.
Verdes como eunucos, os teus desejos
silvam aos meus pecados.
Fora, fora, tentáculos de enguia!
Não há nada entre nós."9
O mergulho que praticou nas águas turvas de si mesma retirou daí o tom violento e a plasticidade trágica desta poesia capaz de fazer estremecer de beleza e fúria o leitor.
1 Ariel, trad. Maria Fernanda Borges, Lx, Relógio d'Água, 1996, publicado no jornal Expresso.
2 The Colossus and other poems, Vintage Books, 1998.
3 A campânula de vidro, Lx, Assírio & Alvim, 2002, 2ªed.
4 op. cit., p. 117
5 idem, p. 149
6 idem, p. 125
7 Ver Lenguaje y Silencio, Barcelona, Gedisa, 1982.
8 Government of the Tongue: selected prose 1978-1987, Farrar, Strauss & Giroux, 1989.
9 op. cit. p. 89
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