quarta-feira, 27 de abril de 2011




ANARQUIA POÉTICA1



Num filme de Woddy Allen - Hannah e suas irmãs - há uma cena em que a personagem interpretada por Michael Caine, para conquistar uma amante, combina um encontro numa livraria onde lhe oferece um livro de Cummings e marca a página onde se encontra o poema "somewhere i have travelled, gladly beyond". É uma peça belíssima da sua veia lírica. Chamo a atenção para este facto, não só por ser antológico, mas porque a homenagem provinha de um realizador que é, também, um crítico, a seu modo, dos ideais do sonho americano através do humor insubordinado.

Inserido geracionalmente na grande tradição da literatura inaugurada por Pound, Joyce ou Gertrude Stein, Cummings estreia-se em 1923 com Tulips and chimneys, onde se percebe a procura de uma expressão transformadora, e dá início às experimentações marcadas pelo inconformismo crítico. Cummings era um iconoclasta radical. Emanam das suas construções poéticas um enredo voltado para o quotidiano, a natureza abstractizada de uma forma totalmente nova. As circunvoluções sintáticas e vocabulares abalam a linguagem e o poema se abre ao leitor com um corpo novo, sem perder a ressonância lírica. A sintaxe constelar de Cummings orbita numa estética que exige o tratamento direto do texto e a sua representação na página. O poeta parece querer materializar o movimento das imagens; a organicidade textual oscila no olhar cáustico sobre o mundo. O poeta reinventa, desloca e cria novos sentidos. O processo chega a ser suicida, porque o discurso é fracturado, actuando nos níveis de leitura. São intervenções quase cirúrgicas que em vez de unir, estilhaçam a forma sem diminuir a intensidade, como no poema "mas outro" em que a sucessão imagética revela o descritivismo reflexivo sobre a ideia de morte, e finda na imagem de uma anciã solitária numa janela:


"mas outro

dia estava eu a passar por um certo

portão, a chuva

caía como cairá


na primavera)

fios de prata deslizando do luminoso

trovão para a frescura

(...)

pensei para mim mesmo Morte

e irá Tu com

(esmerados dedos possivelmente tocar


a rósea existência de malva cujos

olhos de amor-perfeito examinam de manhã à

noite a rua

inalteravelmente a sempre

velha senhora sentada à sua

gentil janela como

uma reminiscência

partilhada


suavemente a cujo portão sorriem

sempre as escolhidas

flores da lembrança"2


Na versão agora publicada, a tradutora optou por traduzir poemas em que o lirismo de Cummings se mostra com todo fulgor.

Nascido em Cambridge, Massachusets, em 1894, viveu com a fotógrafa Marion Morehouse em Greenwich Village, mas preferia a quinta de Silver Lake, New Hampshire, onde recusava aderir ás conquistas do "american way of life" como a luz eléctrica e o telefone.

Além da poesia, escreveu crítica, teatro, e narrativa. Assumiu a cátedra de poesia da Universidade de Harvard. A poesia de Cummings influenciou, de diversas maneiras, os objectivistas como Louis Zukofski, e os poetas da "Language".

Sua obra é inclassificável a todos os níveis, ams a solidão em que trabalhou e experimentou, assim como o ímpeto da sua linguagem, são bastante para avaliar aquilo que fez.


1 Livrodepoemas, trad. Cecília Rego Pinheiro, Lx., Assírio & Alvim, 1999; publicado no jornal Expresso.

2 op. cit., p. 79.

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