quarta-feira, 30 de março de 2011
UM LANCE DA MODERNIDADE1 As obras de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé são marcos decisivos, inauguraram , cada um no seu espaço poético, a modernidade literária do século XX. Stéphane Mallarmé desempenhou um papel central nesse processo. O poeta arriscou de forma radical. A sua poesia se afirmou num ritmo consoante o resgate era feito pelas vanguardas contemporâneas. Nascido em Paris, em 1842, Mallarmé levara aa vida simples de um professor que palmilhava o interior da França a ensinar inglês, que aprendera para ler Edgar Allan Poe no original. Segundo os testemunhos, o poeta era cortês e falava num tom ameno. Ofuscados pelo provinciansimo canhestro, muitos pais não gostavam do professor, e chegaram a exercer pressões para expulsá-lo de Besançon, cidade onde vivia. Mallarmé seguiu para Avignon em 1867, onde abandonou o projeto do Igitur ou a loucura de Elbehnon, um ano depois de ter dado início à colaboração na revista Parnase Contemporain. Já neste péríodo o afligiam as dificuldades financeiras e a insónia de cariz nervoso. Dividido entre a angústia que o atormentava por manter o trabalho como professor e o desejo de assumir a tempo inteiro a poesia, o poeta discutia seus problemas com os amigos mais próximos. Na correspondência que manteve com Henri Cazalis, Mallarmé comentava as frustrações que minavam a sua consciência: "Quantas impressões poéticas teria se não estivesse pressionado a dividir o tempo, enclausurado ao ofício mais estúpido e cansativo que existe. Estaria a cansar-te com lamúrias se contasse como me entristeço nas classes com os apupos e os pedaços de giz que são lançados a todo instante contra mim". Foi este poeta que conseguiu assegurar a forte influência sobre os jovens escritores franceses e ingleses que participaram das célebres tertúlias do 4º andar da rua de Roma, em Paris, iniciadas logo após a mudança da família Mallarmé para esta morada, em 1875. Os relatos sobre estes encontros verpertinos descrevem o poeta sempre a fumar e a discutir sobre poesia, interrompido unicamente pelos ruídos dos comboios. As tardes culturais tinham um ar burguês algo caricato: a mulher sentava-se ao seu lado a bordar, e a filha atendia as visitas, enquanto decorriam as conversas. Compareciam aos encontros das terças-feiras figuras como Marcel Schwob, Villiers de L'isle Adam, Paul Claudel, André Gide, Catule Mendès, Manet, Paul Valéry. A obra poética de Mallarmé não é extensa se comparada com a dos seus companheiros de geração. Concentra uma base estética modelada pela ênfase seletiva dos versos, que encobrem o rigor obsessivo. Isto não anula a abrangência veiculada, pelo contrário, resume o aspecto irredutível de uma poesia que quis abrir caminho para a modernidade. Os grandes poemas de Mallarmé são aqueles em que se nota a busca incessante de uma dicção interrogativa, onde o figurativismo racional preenche cada bloco poético trabalhado ao longo dos anos e muitas vezes inacabados. Ficaram incompletos poemas como Herodíade, L'Après-midi d'un faune, que surgiram como obras dramáticas. Escrever para Mallarmé era um sacrifício, uma tarefa que exigia silêncio e concentração, e muitas vezes restava o nada. Vários dos sonetos que escreveu levaram décadas até chegarem ao ponto final, como o poema De unhas puras tão alto consagrando o ónix3, cujo primeiro esboço apareceu em 1868, e concluído vinte anos depois. Os belíssimos alexandrinos de Herodíade receberam a primeira versão em Tournon, em 1864, mas o poeta só regressaria ao texto no final da vida. Dar-se-ia o mesmo com a harmonia rítmica que se liberta de L'aprés-midi d'un faune4. Escrito sde encomenda para ser encenado pela Comédie Française, foi recusado. É provável que os sucessivos fracassos, as dificuldades quotidianas e a impossiblidade de fazer o que realmente ansiava tenham moldado o poeta Mallarmé. Apesar destes factos, continuava a enfrentar os desafios e projectava silenciosamente um salto mais ousado. É aqui que a obra se desvia, defrontando-se com o segundo momento do seu percurso literário, aquele em que nascem as homenagens funerárias, os tombeaux, mas principalmente o emergir do Igitur, seguido depois de Un coup de Dés. Como acentuei no início do texto, o poeta abandonou o Igitur, em 1867, e é outra das obras inacabadas. O manuscrito foi descoberto em 1925. Igitur é um advérbio latino que sugere consequência; Elbehnon vem do hebraico e significa "filhos de Elohim". Para muitos estudiosos é o marco antecipatório de O Lance de Dados. O acaso, o nada, o vazio e o absoluto, temas cruciais para Mallarmé, suportam a materialização abstracta deste poema em prosa, que Georges Poulet classificou como "suicídio filosófico"5. Obra derradeira, O Lance de Dados tem o mérito de ser um poema renovador. Ao escrevê-lo, Mallarmé estava a posicionar-se num tempo e espaço fora da sua época, o "lugar nenhum" que todo artista deve aspirar, segundo as palavras de Blanchot. A disposição estrutural dos versos e a fragmentação tipográfica alertam para uma visualidade inerente do poema. É a orquestração de um lance de ruptura que acabou por definir as mudanças literárias inscritas nas obras de muitos autores, como o Apollinaire dos Calligrames, ou Blaise Cendrars da Prose du Transibérien. As portas abertas por esse poema tornam explícita a sua influência até à actualidade. Com efeito, podemos detectar a sua presença em poetas como Jacques Roubaud ou André du Bouchet. O poeta que reflectira sobre o acaso, a esterilidade e o vazio conseguiu projetctar a sua voz para além do seu tempo, no texto que se converteu num dos pontos culminantes da poesia ocidental. 1 Texto escrito no centenário da morte do poeta (setembro de 1998); publicado no jornal Expresso. 2 Igitur ou a loucura de Elbehnon, trad. Carlos Valente, Hiena, 1990. 3 Stéphane Mallarmé - poemas lidos por Fernando Pessoa, trad. José Augusto França, Lx., Assírio e Alvim, 1998. 4 A tarde de um fauno e Um lance de dados, trad. Armando Silva Carvalho, Lx., relógio d'Água, 2001. 5 Études sur le temps Humain II - La distance Interieure, Paris, Plon, 1990.
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