quinta-feira, 10 de março de 2011


A PALAVRA TRANSATLÂNTICA1
Segundo uma definição lapidar do poeta Murilo Mendes, "O Uruguai é um belo país da América do Sul, limitado a norte por Lautréamont, ao sul por Laforgue, a leste por Supervielle. O país não tem oeste"2. Na ordem inexplicável do destino, a frase regista este misterioso acontecimento que uniu a França e o Uruguai através da obra destes poetas.
De todos eles, só Jules Supervielle assumiu a via transatlântica, sendo reconhecido como um grande divulgador da literatura francesa no seu país de origem, e o mesmo aconteceu em França, em relação à literatura da América Latina.
Poeta, dramaturgo e contista, Supervielle nasceu em Montevideu, em 1884, e faleceu a 16 de maio de 1960, em Paris. Num texto publicado na revista Sur na altura do falecimento do poeta, Jorge Luis Borges explicou um pouco o papel encenado por Supervielle: "Es sabido que la literatura francesa tiende a producirse en función de la historia de esa literatura. Los escritores acatan y enriquecen una tradición o deliberadamente la infringen, lo cual es otra manera de enriquecerla(...) El extravagante no ignora su extravagancia y sabe que esta no será otra cosa que un rasgo en el dibujo secular". É uma síntese perfeita daquilo que Supervielle fez ao longo do seu percurso literário.
Começou a publicar em 1919, frequentando o parnasianismo e o pós-simbolismo vigentes naquele período. Supervielle estava ainda longe do tom angustiado e fúnebre de Gravitations3, ou do humor melancólico que experimentou, numa espécie de retomada da linhagem estabelecida por Jules Laforgue.
Filho único de uma família que chegou a fundar bancos no Uruguai, Supervielle preferia a ascendência familiar de relojoeiros , como referiu mais de uma vez. A sua mudança para França aconteceu após a morte dos pais, e desde então deslocou-se entre a Europa e a América Latina. O seu reconhecimento veio aos 36 anos, quando se aproximou de Jacques Rivière e Valéry Larbaud. A inserção no meio literário francês consolida-se, enquanto troca correspondência com Saint-John Perse, Max Jacob e Rilke. Mas os amigos mais importantes foram Jean Paulhan e Henri Michaux, com quem manteve uma cumplicidade que se prolongou até à morte de Supervielle. É de Michaux a célebre caracterização do poeta franco-uruguaio:"Pour moi, Supervielle sera toujours Guanamiru. Il éclaitait comme un volcan de poésie en perpetuelle fusion".
Da estirpe daquelas fábulas desconcertantes como A cruzada das crianças de Marcel Schwob, O Ladrão de crianças foi publicado em 1926 e define a tensão onírica que pressiona as portas do real, deformando a linearidade do quotidiano. Supervielle libera uma série de alegorias hiperbólicas que acabam por soar como legítimas num mundo de estratégias e dúvidas.
Um coronel de um país longínquo da América Latina, por não ter filhos com a mulher, começa a raptar crianças que vivem numa mansão, distantes da vida que tinham com as famílias verdadeiras. Supervielle não propõe qualquer moral, tudo acontece sem pressão - as crianças aceitam o padrasto-raptor e o novo quotidiano que levam, até um membro insurgir-se contra o coronel. Mas a eficácia ficcional reside sobretudo no modo como Supervielle deixa em suspensão o ardor da sensualidade e da luxúria do coronel e da jovem por quem acalenta um desejo silencioso e submisso. Na verdade, aquilo que aparece subterraneamente é a necessidade de domar os nossos demónios e silenciar os desastres.
Somos todos bizarros num mundo de equívocos, e Supervielle traduziu com fascínio e sobressalto todas estas evidências.
1 O ladrão de crianças, Lisboa, Íman, 2001; publicado no jornal Expresso.
2 Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, 1994.
3 Gravitations, Paris, Gallimard, 1925.

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