terça-feira, 4 de janeiro de 2011


UM PACTO COM A SEVERIDADE 1


Em 1963 surgiu em Espanha o volume Poesía Última2, organizado por Francisco Ribes, que reunia testemunhos e poemas de Ángel González, Carlos Sahagún, Cláudio Rodriguez e José Ángel Valente, entre outros autores. Cinco anos mais tarde é dado à estampa a Antología de la Nueva Poesía Española3, de Luíz Batlló que listava autores como Francisco Brines, Jaime Gil Biedma e Carlos Barral, que testemunharam tanto a Segunda Guerra Mundial como a Guerra Civil espanhola.
Tendo nascido em 1929, em Orense (Galiza), José Ángel Valente publicara na década de 50 as suas primeiras obras, A modo de Esperanza4 e Poemas a Lázaro 5. Com efeito, o poeta era representante de um grupo que desenvolvia as suas experiências após o caudal magnífico da geração de 27. A um jovem daquela altura era difícil não se deixar envolver pelas obras de Pedro Salinas, Jorge Guillén ou Juan Ramón Jiménez.
José Ángel Valente estudara em Santiago de Compostela e em Madrid. A partir de 1958 mudou-se para Genebra onde trabalhou como tradutor ligado às Nações Unidas e foi aí que faleceu em 18 de julho de 2000. Considerado um dos nomes centrais da sua geração, José Ángel Valente demarcou-se dos seus companheiros e foi um crítico acérrimo. De facto, fundou para si uma zona activa onde situou a sua poesia, distanciando-se o máximo do agrupamento geracional ao qual pertencera pela simples arrumação cronológica que nem sempre ajuda um autor. "Caminemos e defendámonos juntos, dicen los medíocres", declarou o poeta, demonstrando assim a independência em relação aos poderes literários espanhóis. A personalidade crítica, a ética pessoal e a individualidade intelectual fizeram deste poeta uma figura exemplar que não se coibiu de criticar autores como José Hierro, Ángel González ou Luís garcía Montero
Creio que Ángel Valente queria chamar a atenção para uma poesia mais essencial e rigorosa, daí o interesse pela tradução de autores como John Donne, Gerard Manley Hopkins, Dylan Thomas, John Keats, Eugenio Montale, Edmond Jabès, Hölderlin - que traduziu para o galego - e Paul Celan.
Não há dúvida de que foi um dos poucos da sua geração a levar o horizonte poético a um limite extremo. Nota-se uma progressão estilística, a experimentação temática e formal. Se, num poema como "El espejo" do segundo livro, há um tom coloquial:

"Remotamente quejumbroso,
remotamente aquejado de fútiles pesares,
poeta en el más venenoso sentido,
poeta con palabra terminada en un cero
odiosamente inútil,
cuento los caedizos latidos
de mi corazón y qué importa?"6

nos poemas posteriores a percepção torna-se mais tensa, concentrada e reflexiva:

"Lo que dije no sé.

La cifra mayor del llanto o de la vida
de quién la podía tener.

Hay un lenguaje roto,
un orden de las sílabas del mundo.

Descífralo.

Porque algunas de sus palabras
asaltarán tu sueño, Agone,
para no gemir
eternas
en lo oscuro"7

A orientação fortemente individualista leva-o a penetrar mais fundo nas tramas da linguagem. O poeta que foi apodado de "culturalista", praticou uma hábil ironia:

"Ahora cuando escribo sin certeza
mi bionotabibliográfica
a petición de alguien que desea incluirme
de favor y por nada
en consabida antología
de la sempiternamente joven senescente
poesía española de postguerra
(...)
cuando escribo
mi bioesquelonotabibliográfica
compruebo minucioso la fecha de mi muerte
y escasa es, digo con gentil tristeza,
la ya marchita gloria del difunto"8

A densidade expansiva da sua poesia desloca-se para diversas frentes, aos poucos o poeta beira a maturidade poética, convocando uma constelação de referências. As belíssimas homenagens recordam Luís Buñuel, Lezama Lima ou Lautréamont, interiorizando a distância do exílio. De certa forma, a marca de equilíbrio e aprofundamento da linguagem dar-se-á ao inserir os ritmos tradicionais no livro Breve Son:

"Quien pudiera andar
sobre las águas verdes
de este mar.

Y por el aire gris
quién pudiera, mar grande,
dejarse ir.

Mar de Muxía
que en sus barcas de piedra
me llevaría"9

O poeta soube sempre extrair novos tons, como se cada livro revelasse uma voz insubmissa. Em Treinta y siete fragmentos, Ángel Valente aprimora as imagens repletas de opacidade metafórica:

"Madre,
el niño homófago
nace en tu paladar,
devora tu saliva,
cae
en el caudal del llanto hasta los invisibles sáurios
de la orilla remota que le tiende tu amor"10

O poeta está sempre em demanda de uma expressão original, a realçar a dicção traduzida na invocação de uma mística poética pessoal intimamente ligada a Miguel de Molinos que o poeta estudou, mas que irá tocar ainda na cultura sufi, nos poetas zen-budistas. O próprio pensamento de Valente reclama uma essencialidade11. Em toda a sua obra parece estar inscrito um pacto com a severidade.
No poema "Punto cero"12, o poeta discorre sobre o abandono da poesia por Rimbaud e a vida enigmática de Lautréamont, e faz a seguinte interrogação final:

"Podríamos nosotros sobrevivirlos?"

É a consciência do poeta confrontado com a sua tarefa, a relação com a linguagem, o
alheamento em relação aos processos que caucionam uma poesia e o perigo de a sua obra perder o rumo.
José Ángel Valente teve a audácia de defender uma moral do poema, o "poema autêntico". Para os indolentes, isto é simples utopia. Contudo, resta ainda uma última inquirição: será que a experimentação da linguagem que define o verdadeiro poeta é um aspecto meramente utópico, mas essencial, ou não?

1 - Obra poética 1 e 2, Madrid, Alianza editorial, 1999; publicado no jornal Expresso.
2 - Poesía Ultima, Madrid, Taurus, 1963.
3 - Antología de la Nueva Poesía Española, Barcelona, El Bardo, 1968.
4 - Op. cit., p. 15 e 71
5 - idem, vol 1, p. 17.
6 - ibidem, p. 71
7 - ibidem, p. 379.
8 - Ibidem, p. 425.
9 - Ibidem, p. 292.
10 - Ibidem, p. 422
11 - Variaciones sobre el Pájaro, Barcelona, Tusquets, 1991; Las Palabras de la Tribu, Barcelona, idem, 1994.
12 - op. cit., p. 142.







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