quinta-feira, 20 de janeiro de 2011


GEOGRAFIA POÉTICA1

No território do Chile há uma região denominada Araucanía, ou "A Fronteira". O povo que habita esta zona é o mapuche, cujas origens remontam aos quíchuas. Nas lutas travadas durante a conquista espanhola, este povo demonstrou uma resistência férrea, de tal forma que o poeta e soldado espanhol, Alonso de Ercilla, lhe celebrou a coragem no longo poema "La Araucana"2, publicado em 1569. Os combates só viriam a acabar no final do século XIX, quando os chilenos conquistaram a soberania. A região onde vivem ainda hoje os mapuches encontra-se entre os ventos antárcticos do Pacífico sul e a inclemência dos Andes.
Ao concluir o Canto Geral, em 1949, Pablo Neruda recuperava factos que as águas do rio da história haviam encoberto, reabilitando não só as tradições do canelo mágico dos mapuches como toda uma galeria de personagens anónimas que teceram a extensa manta de retalhos de que é feita a América Latina.
A geografia poética de Neruda adopta um pendor titânico: dar voz a todo um continente situando o epicentro da sua façanha no resgate estratégico das realidades latino-americanas, contrapondo passado e presente como fio condutor do poema. A fusão de culturas e a comunhão de linguagens são os instrumentos que aceleram a cadência da epopeia, que atinge momentos admiráveis, assim como derrapa no mais explícito panfletarismo ideológico.
Para Neruda , a década de 40 fora criativa. Escreveu Residencia en la Tierra, España en el Corazón, Tercera Residencia e concluiu o Canto Geral. A par do trabalho literário aprofundou a militância política que acabaria por toldar, muitas vezes, a sua obra. Os pontos cardeais da sua poesia apontam para o lirismo inicial e nostálgico de Veinte Poemas de Amor y una canción Desesperada3, depois na invocação elementar da natureza de Residencia en la Tierra, até à arquitectura épica do Canto Geral, completando-se o ciclo com o sedutor apelo político de Tercera Residencia. Eis a súmula da sua poética que, segundo Octavio Paz, é "a bárbarie terrestre, genésica".
A evocação inicial do poema congrega toda a afluência de civilizações que povoaram o continente, comparecendo numa sucessão caraíbas, chibchas, araucanos, incas, zapotecas, entre muitos outros. As alusões ao corpo geográfico da América Latina abarcam todo o poema, em conjunção com as referências geológicas, vegetais, os factos políticos e históricos. Neruda pretende refutar a realidade para reescrevê-la segundo a afirmação de uma mundividência que se cristaliza em certas passagens do texto.
O primeiro momento a confirmar esta projeção destaca-se no segundo canto "Alturas de Macchu Picchu", onde encontramos, às vezes, as plasticidades presentes em livros como Residencia en la Tierra, por exemplo, o primitivismo metarfórico:

"Alguém que me esperava no meio dos violinos
encontrou um mundo semelhante a uma torre
enterrada
que mergulhava a sua espiral no fundo de todas
as folhas da cor do rouco enxofre:
mais ao fundo, no ouro da geologia,
como uma espada envolta em meteoros,
mergulhei a mão turbulenta e doce
no mais íntimo da terra"4

Duas imagens parecem sopesar o andamento do poema - a figura do condor andino e os anónimos mineiros chilenos -, Neruda conduz a sua imagética numa variável cadeia de tons e exercícios estilísticos, o poeta quer reinscrever a assinatura do mundo primitivo:

"Então subi pela escada da terra
por entre o emaranhado atroz das selvas perdidas
até chegar a ti, Macchu Picchu
(...)
Em ti, como duas linhas paralelas,
o berço do relâmpago e do homem
balouçavam num vento de espinhos"5

A investida poética prossegue com maior intensidade no terceiro canto, "Os Conquistadores". Uma passagem a destacar é o poema XXII, em que o poeta homenageia Alonso de Ercilla:

"Pedras de Arauco e desprendidas rosas
fluviais, territórios de raízes,
encontram-se com o homem de Espanha.
Invadem a sua armadura com gigantesco líquen.
A hera original põe mãos azuis
no recém-chegado silêncio do planeta.
Homem, Ercilla sonoro, ouço a pulsação da água
do teu primeiro amanhecer, um frenesi de
pássaros
e um trovão na folhagem"6

As imagens reproduzem-se nas ressonâncias metafóricas. Neste sentido, consegue-se perceber os ecos que assombram o poema, como de César Vallejo:

"Irmãos da água e do piolho, dum planeta carnívoro
vistes enfim, a árvore do mastro inclinada na tempestade?"7

Esta obra é um arquipélago multifacetado, com passagens de extrema beleza vocabular e imagética, porém, pelo meio activa-se uma prosódia calcada pela propaganda ideológica, que rasura o seu poder encantatório. Isto não nos impede de reafirmar que é um poema central da expressão poética hispano-americana do século XX e a importância que auferiu como instrumento de insurreição contra as inerências políticas da América Latina.

1 Canto Geral, trad. Albano Martins, Porto, campo das Letras, 1999, publicado no jornal Expresso.
2 La Araucana, Barcelona, ed. Ramón Sopena, 1981.
3 Ver tradução de José Bento, Antologia, Lx., Relógio d'Água, 1998.
4 Op. cit., 39.
5 idem, p. 45
6 Ibidem, p. 90
7 Ibidem, p. 95

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