- A VOZ DO DELÍRIO1
Embora o acto da escrita em Artaud seja testemunha da sua agonia mental, como em Gérard de Nerval e Hölderlin, foi através desta progressão - entre as ruínas da condição psíquica - que colmatou o 'corpus' de uma obra cujos valores foram postos às avessas, abolindo os limites literários. As obras destes autores reflectem o momento em que a arte atinge o paroxismo dos sentidos e abre as portas da percepção, revelando territórios estranhos à literatura.
Os movimentos artísticos do início do século XX, como o Dadaísmo e o Surrealismo, reactivaram essas zonas de interesse, promovendo a inclusão de tais preceitos nas argumentações estéticas e elegendo alguns nomes do Romantismo e do Simbolismo como antecessores. Tal processo manifestou-se em várias partes do globo, onde os “ismos” emergentes deixaram as suas marcas.
Portugal não ficou alheio à demanda. Percebem-se tanto na poesia de Gomes Leal como na de Ângelo de Lima, a influência do Simbolismo, e a projecção do delírio psíquico que cada uma recebeu. António Gancho seria o terceiro e último representante desta “tríade” singular da poesia portuguesa.
Se
A sua prática não se avizinha dos fundamentos da rêverie fenomenológica de Bachelard, tão-pouco do automatismo escritural e aleatório das vanguardas europeias; está mais próxima da lucidez agonizante de Artaud, ao viver a sua condição patológica de forma radical:
“Faço um poema e nasce uma cidade
invento o conteúdo geográfico das coisas.
Escrevo um nome e nasce Dublin
Porque Dublin escrevi.”2
Se
“caminho puro e são
chanção
coração
sahara
uazara
oasara”5
Continua no «Gaio do Espírito»:
“mas não vês Moscovo não tem mão
acaba onde a questão do ovo
põe moscas em todo lado.
Moscovo, verbo acabado de moscas”6
Enquanto nestes poemas a contenda principal dá-se entre som e sentido, noutros avista-se a reverberação de uma expressividade própria:
“dá-te o poder mágico de transformar as coisas
onde dizes palavra ela abre-te a palavra
e então são todas as palavras do Mundo
que tu vens a conhecer”7
ou:
“E tinhas o brilho duma estrela gravado pelo peito
como se fosse uma tua tatuagem de luz”8
A reunião da obra de Gancho é oportuna, pois deparamos com um discurso onde a imagem começou por ter predomínio. O seu desenvolvimento mostra que essa presença foi cedendo lugar às distorções ortográficas e gramaticais e à profusão dos neologismos.
Quando movimentos, escolas e vagas literárias tão díspares entre si promulgam a abertura do inconsciente, um irracionalismo libertino, convém perguntar então: o que é arte, o que é literatura?
Entretanto, torna-se necessário inquirir mais uma vez: onde se situam a razão e a consciência após a leitura de Blake, Swedenborg, Rimbaud ou Lautréamont?
A linguagem da loucura cria evidências nítidas, como uma parte da poesia de António Gancho. Mas o que é a loucura? “A alma dos loucos não é louca”9, dizia Foucault.
1 O Ar da Manhã, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, publicado no jornal Expresso.
2 Op. Cit., p.41
3 Claridades do Sul, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998
4 Poesias Completas de Ângelo de Lima, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991
5 op. cit., p. 58
6 idem, p. 78
7 ibidem, p. 10
8 ibidem, p. 39
9 História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 2ª ed., 1987
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