quarta-feira, 8 de dezembro de 2010


O NASCER DE UMA VOZ

Imaginemos que neste preciso momento um leitor qualquer concluiu a leitura de um livro digamos, Poesia de Luiza Neto Jorge , e um verso ficou a ressoar, por exemplo, “O poeta é um animal longo desde a infância”. O suposto leitor guardará a ressonância provocada pelo verso e recordá-lo-á sempre. Isto não acontece com frequência. Mas, às vezes, é o instrumento que ajuda a medir a tensão poética de um autor.

Lemos isto na última recolha de Pedro Sena-Lino:

“todas as cidades estão ancoradas num verso

que alguém deixou aceso na boca de um morto”2

É uma voz que se exprime de maneira distinta, isolando-se do coro repetitivo da poesia portuguesa mais recente. Biofagia é o terceiro livro de um dos mais jovens poetas portugueses nasceu em 1977 que desde A Constelação dos Antípodas e As Flores do Sono3 revelara a singularidade expressiva face aos seus contemporâneos. Quando, hoje, os brasões das novas vagas geracionais ostentam especificidades estilísticas, estruturadas segundo uma discursividade sem inovações, temáticas saturadas e sem um confronto mais arriscado com a linguagem, é de louvar que um poeta recuse tais pressupostos.

Há autores assim, permanecem como satélites, apartados da órbita a que pertencem, distantes do tom que impera na altura, alheios aos modismos epocais, arrogando para si uma independência em relação aos sectarismos. Este autor tem uma vantagem: está só e parece falar para bem poucos. Na verdade, situa-se num território exclusivo e detém uma legitimidade imaginativa para ocupar um lugar de relevo.

Pedro Sena-Lino mantém-se impermeável à linguagem chã dos seus companheiros de geração e, para além disso, baralha a sua descendência. Aproximando-se de um tom litúrgico, desesperado e conflituoso, converge para uma religiosidade que abandona e desfigura, à semelhança de Daniel Faria:

“fiz do livro um corpo bíblico de mim

e do Deus vulgar por minha causa

penetrei o corpo à esquina do calvário

e Jerusalém nem por isso ficou presa a minha língua”4

Dentro da temática da infância, é de sublinhar o poema estranhíssimo, “primeira morte”, que traça um paralelo com um poema de Blaise Cendrars, “Le ventre de ma Mère”. Ao perseguir uma estilística própria, o poeta combina a ausência de pontuação, procurando experimentar vários timbres:

“sou humano porque a minha linguagem vive

corre de um denso que não toco ou vejo

mas que me corre o sangue como um estado

me surpreende o nada que me anula

eu violado por mim próprio

palavra meus olhos e meu féretro

meu espelho de ti eu me convoco”5

Mas é o aspecto virulento que condiciona as suas imagens:

“comíamos poemas pela mesma boca e

depois nos vestíamos de latitudes densas

para sabermos pisar o mundo morto”6

determinando assim a voz autêntica de um poeta a imprimir a sua inscrição:

“dá-me o prazer carnívoro de me escrever

de me deitar rasgado pelo texto fora

comendo os braços de mágoas e a pedra em sangue

(…)

escrevendo-me noutro corpo que me leia”7

1 Biofagia, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2003, p.81, publicado no jornal Expresso.

2 A Constelação dos Antípodas, Lisboa, Litera Pura, 2000, As Flores do Sono, Litera Pura, 2002

3 Op. Cit., p.35

4 Idem, p.35

5 Ibidem, p. 31

6 Ibidem, p. 21

7 Ibidem, p. 42

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