quinta-feira, 16 de dezembro de 2010


HISPANO-AMERICANOS


DESCIDA AOS INFERNOS1

Um retrato aproximado do poeta francês Antonin Artaud seria este: cabelos em desalinho, o perfil anoréxico, mastigava ruidosamente a comida e com a boca aberta, arrotava e cuspia no chão. Leopoldo María Panero, considerado o marginal por excelência da poesia espanhola do século XX, poderia ser descrito da mesma forma. Quem faz a comparação é o biógrafo do poeta espanhol, Benito Fernández2:

“El retrato que tantas veces había escuchado de Leopoldo comiendo era mera ficción: la realidad resultaba más dura. Manos cruzaban la mesa en busca de algo, boca abierta salpicando pedacitos de materia, dentadura desajustada, cigarrillos aplastados sobre un aniquilado filete. Y todo a la velocidad del rayo”3. Mas isso tudo com uma agravante: o poeta apresentava ainda disfunções fisiológicas intestinais e, muitas vezes, vomitava sem avisar.

Tais descrições não são nada agradáveis, porém bastante reais. É que o poeta é um representante genuíno daquele grupo maldito de autores como William Blake, Gérard de Nerval, ou Malcolm Lowry, em que vida e obra, loucura e lucidez misturam-se num círculo infernal. Panero arrastou a vida em manicómios, prisões e clínicas de desintoxicação. Experimentou todos os géneros de drogas; entregou-se ao alcoolismo crónico e abjecto, chegando a tocar na realidade mais sórdida ao viver nas lixeiras parisienses durante a década de 70. É a vida embalada numa estação do inferno pessoal, entre a marginalidade e o obsceno, a genialidade e a demência.

O poeta nasceu em Madrid, em 1948. O pai, Leopoldo Panero, colaborou com o regime franquista, e a mãe, Felicidad Blanc, teve uma relação estranhíssima com o filho ao ponto de lhe comprar e guardar as drogas que consumia. Foi o segundo rebento do casal - o primeiro é o poeta Juan Luís Panero.

A tradição literária atravessa toda a história familiar. Panero revela desde criança a sua apetência poética, quando, aos três anos espanta a mãe com um texto que havia escrito:

“Sacadme de la tumba pero

allí me dejaron con los habitantes

de las cosas destruidas

que no eran más que

cuatro mil esqueletos”4

A familia fica preocupada e fazem todos os tipos de exames para ver se a criança não apresentava nenhuma anormalidade. Mas continua a espantar os amigos do pai, como o poeta Dámaso Alonso que ouve o menino de 8 anos a dizer os seus próprios poemas. Assim como começara a escrever muito cedo, subitamente abandona a poesia à qual só voltará aos 14 anos.

O adolescente que ouvia Pat Boone e Cliff Richard conquista a primeira namorada e expõe atitudes insubordinadas que o popularizam no Liceu Italiano de Madrid, onde estuda. É nesta altura que participa na primeira tertúlia literária. Completara 15 anos, tinha um rosto fino e terno, e é quando a família decide visitar Alexandria, onde os dois irmãos Panero lêem Kontantino Kaváfis.

Madrid reunia, em meados da década de 60, inúmeras células comunistas. Panero passa a reunir-se numa de filosofia e letras. Em Dezembro de 1966 é preso pela primeira vez quando estava a colar cartazes. Um ano depois entra numa febre criadora e pede à mãe que mostre alguns dos poemas ao irmão mais velho, Juan Luís. Felicidad Blanc recordou este facto no livro de memórias Espejo de Sombras, acrescentando que o irmão olhou com indiferença para os papéis, sem qualquer comentário. Segundo deduziu, naquele momento surgira a rivalidade entre ambos.

1968 é o ano da primeira tentativa de suicídio. Panero ingere uma grande quantidade de comprimidos para dormir. Após uma lavagem intestinal, foi internado numa clínica psiquiátrica particular e o seu périplo pelos internamentos nunca mais parou, enquanto lia intensamente Yeats, Artaud e Michaux. Leopoldo Maria é já um consumidor de marijuana, que oferece aos outros pacientes e é repreendido.

Nesta época ouvia rock and roll, e lia Wilhelm Reich. É preso por posse de estupefacientes. O crime era grave e para voltar à rua era preciso que alguém testemunhasse a seu favor afirmando que era escritor e tinha boa conduta. Vicente Aleixandre e Carlos Bousoño oferecem-se como testemunhas, mas não conseguiu desenvencilhar-se e seguiu para o presídio de Carabanchel, uma prisão que reunia presos comuns e estudantes antifranquistas. Em seguida é transferido para Zamora, e aqui se inicia na homossexualidade. Na extensa correspondência que trocava revelou a sua nova opção sexual à mãe, que o apoia e estimula.

Em Abril de 69 sai em liberdade, após quatro meses de clausura. Dois meses depois parte para Tânger, onde se encontra com Eduardo Haro Ibars, o seu amante, e consomem LSD. A experiência provoca uma ruptura no equilíbrio psíquico do poeta, tornando-se num feroz consumidor de psicofármacos. No final de Junho de 1969 é internado mais uma vez. Relembrou este período no documentário sobre o pai, «El Desencanto» (1977), de Jaime Chávarri: “ A cambio de tabaco recíbia el placer de la felación”.

Panero é uma lenda no meio literário espanhol, carregando a aura de autor maldito que se vestia de forma exótica, isto numa Espanha cinzenta e opressora. Foi Pere Gimferrer que apontou o seu nome para ser incluído na antologia «Nueve Novísimos»6. O seu primeiro livro, Asi se Fundo Carnaby Street, é publicado com uma dedicatória aos Rolling Stones. Após o lançamento, Panero viaja para Cambridge como bolseiro com o intuito de estudar inglês. Mas abandona a cidade e muda-se para Londres. A cidade fervilhava com o advento do “Glam Rock” e do “Gay Power”. O poeta vive de forma efusiva e encontra-se com Miguel Bosé que deambulava pela noite londrina. A década de 70 será cadenciada pelo uso de drogas e internamentos sucessivos.

Realizam-se, em Espanha, em Julho de 77, as primeiras eleições após 41 anos. O país está em delírio e Barcelona é o centro das Jornadas Literárias Internacionais que ocorreram no Parque Guell. Victor Aranda, Godard, Costa Gavras, Alain Resnais participam activamente nos debates. Panero está em euforia com os acontecimentos, mas encontra-se num estado de penúria, à procura de beatas pelo chão para fumar. Um ano depois vai para Paris, palmilhando as ruas completamente só, sujo e com os amigos espanhóis a fugirem dele.

Quando a movida madrilena irrompe, frequenta El Sol - tornar-se-á um bar da moda - misturando whisky com anfetaminas. A década de 80 avizinha-se. Na Madrid pós-moderna e socialista, Panero é um homem de 34 anos, solitário e alcoólico, até que a mãe resolve interná-lo num hospital basco, o manicómio de Mondragón. O local converte-se aos poucos num ponto de peregrinação para jornalistas, estudantes, professores, e curiosos. O jornal espanhol ABC faz-lhe o convite para escrever uma coluna. A mãe falece em Outubro de 1990. Leopoldo María Panero fica totalmente sozinho, mas continua a aumentar a sua bibliografia maldita.

****

Os autores seleccionados na célebre e polémica antologia de J. M. Castelet Nueve Novisimos, pertenciam a uma geração que procurava exprimir as transformações que vinham ocorrendo em Espanha, além de fazer face aos valores tradicionais da linguagem poética. A obra estava dividida em duas secções - os “seniors” e as “coqueluches”. Participaram, na primeira secção, os autores cronologicamente mais velhos - Manuel Vázquez Montalbán, Antonio Martínez Sarrión, José María Alvarez; na outra, os mais jovens - Pere Gimferrer, Vicente Molina Foix, Guillermo Carnero, Ana María Moix e o mais novo de todos, Leopoldo María Panero.

Pere Gimferrer conhece o poeta num bar de jazz onde circulava muito haxixe e drogas químicas. Panero, um hóspede frequente do circuito marginal, simpatiza com Gimferrer e passam a trocar experiências. Panero encontra Vicente Aleixandre - um dos lemes da Geração de 27 - através da interferência de Gimferrer. Mas o jovem poeta vive numa espiral alucinante. Quando encontra António Sarrión, este lhe pergunta de imediato:

“Me han dicho que eres el tio más borracho de todo Madrid, después de mí”

Entre as ruínas de um quotidiano encharcado por drogas e álcool, Panero conseguiu manter a lucidez suficiente para produzir uma obra violenta, com referências à coprofilia, à necrofilia, blasfémias, alusões homoeróticas, o incesto e intertextualidades estabelecidas com uma galeria magnífica de autores - de Dante aos provençais, de Georg Trakl a Wallace Stevens, de Louis Zukofsky a Guido Cavalcanti.

Nutrindo-se de uma imaginação escatológica e visionária, Panero seria, porventura, o resultado legítimo de um encontro entre Ezra Pound e o marquês de Sade:

“despojado de tudo

salvo do teu nome

dos teus beijos no meu ânus

e das tuas carícias na minha cabeça calva

espargiremos com vinho, urina e

sangue as igrejas

dádiva dos magos

e debaixo do crucifixo

uivaremos.”7

É a deformação da realidade levada às últimas consequências por via de alucinações verbais, demolindo as estruturas interiores e os sentidos. A radicalidade com que enfrenta a linguagem permanece autêntica, porque o preço do génio para Leopoldo Maria Panero foi a loucura.

1 Poemas do Manicómio de Mondragón, trad. de Jorge Melícias, Coimbra, editora Alma Azul, 2003, publicado no jornal Expresso.

2 El Contorno del Abismo - vida y leyenda de Leopoldo María Panero, Barcelona, Tusquets, 1999.

3 Op. Cit., 25

4 Op. Cit. 51

5 Espejo de Sombras, Barcelona, Argos, 1977.

6 Nueve Novisimos Poetas Españoles, Barral, 1971.

7 Op. Cit., p.51





sexta-feira, 10 de dezembro de 2010


- A VOZ DO DELÍRIO1

Embora o acto da escrita em Artaud seja testemunha da sua agonia mental, como em Gérard de Nerval e Hölderlin, foi através desta progressão - entre as ruínas da condição psíquica - que colmatou o 'corpus' de uma obra cujos valores foram postos às avessas, abolindo os limites literários. As obras destes autores reflectem o momento em que a arte atinge o paroxismo dos sentidos e abre as portas da percepção, revelando territórios estranhos à literatura.

Os movimentos artísticos do início do século XX, como o Dadaísmo e o Surrealismo, reactivaram essas zonas de interesse, promovendo a inclusão de tais preceitos nas argumentações estéticas e elegendo alguns nomes do Romantismo e do Simbolismo como antecessores. Tal processo manifestou-se em várias partes do globo, onde os “ismos” emergentes deixaram as suas marcas.

Portugal não ficou alheio à demanda. Percebem-se tanto na poesia de Gomes Leal como na de Ângelo de Lima, a influência do Simbolismo, e a projecção do delírio psíquico que cada uma recebeu. António Gancho seria o terceiro e último representante desta “tríade” singular da poesia portuguesa.

Se em Gomes Leal e Ângelo de Lima a poesia se torna refractária ao Simbolismo fin de siècle, em António Gancho a “sombra” dos processos surrealistas actua com intensidade, sobretudo através da influência de Mário Cesariny e Herberto Hélder. Querer confrontar as causas que levaram a sua escrita assumir tais ressonâncias é tocar num assunto em que o aspecto formal e psíquico acaba por influenciar a leitura da sua obra.

A sua prática não se avizinha dos fundamentos da rêverie fenomenológica de Bachelard, tão-pouco do automatismo escritural e aleatório das vanguardas europeias; está mais próxima da lucidez agonizante de Artaud, ao viver a sua condição patológica de forma radical:

“Faço um poema e nasce uma cidade

invento o conteúdo geográfico das coisas.

Escrevo um nome e nasce Dublin

Porque Dublin escrevi.”2

Se em Gomes Leal há o registo de um decadentismo sangrento - ver “Visão d’Ópio” ou “Nevrose Nocturna”3 -, em Ângelo de Lima o nascimento de uma teurgia delirante - ver “Ocaso”, “Cântico Semi-Rami” ou “Neitha-Kri”4 -, em António Gancho articula-se uma linguagem híbrida feita de definições irracionais e indefinições temáticas. Na sua poesia delineia-se uma espécie de interpolação rítmica que apoia certos poemas:

“caminho puro e são

chanção

coração

sahara

uazara

oasara”5

Continua no «Gaio do Espírito»:

“mas não vês Moscovo não tem mão

acaba onde a questão do ovo

põe moscas em todo lado.

Moscovo, verbo acabado de moscas”6

Enquanto nestes poemas a contenda principal dá-se entre som e sentido, noutros avista-se a reverberação de uma expressividade própria:

“dá-te o poder mágico de transformar as coisas

onde dizes palavra ela abre-te a palavra

e então são todas as palavras do Mundo

que tu vens a conhecer”7

ou:

“E tinhas o brilho duma estrela gravado pelo peito

como se fosse uma tua tatuagem de luz”8

A reunião da obra de Gancho é oportuna, pois deparamos com um discurso onde a imagem começou por ter predomínio. O seu desenvolvimento mostra que essa presença foi cedendo lugar às distorções ortográficas e gramaticais e à profusão dos neologismos.

Quando movimentos, escolas e vagas literárias tão díspares entre si promulgam a abertura do inconsciente, um irracionalismo libertino, convém perguntar então: o que é arte, o que é literatura?

Entretanto, torna-se necessário inquirir mais uma vez: onde se situam a razão e a consciência após a leitura de Blake, Swedenborg, Rimbaud ou Lautréamont?

A linguagem da loucura cria evidências nítidas, como uma parte da poesia de António Gancho. Mas o que é a loucura? “A alma dos loucos não é louca”9, dizia Foucault.

1 O Ar da Manhã, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, publicado no jornal Expresso.

2 Op. Cit., p.41

3 Claridades do Sul, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998

4 Poesias Completas de Ângelo de Lima, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991

5 op. cit., p. 58

6 idem, p. 78

7 ibidem, p. 10

8 ibidem, p. 39

9 História da Loucura, São Paulo, Perspectiva, 2ª ed., 1987

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010


O NASCER DE UMA VOZ

Imaginemos que neste preciso momento um leitor qualquer concluiu a leitura de um livro digamos, Poesia de Luiza Neto Jorge , e um verso ficou a ressoar, por exemplo, “O poeta é um animal longo desde a infância”. O suposto leitor guardará a ressonância provocada pelo verso e recordá-lo-á sempre. Isto não acontece com frequência. Mas, às vezes, é o instrumento que ajuda a medir a tensão poética de um autor.

Lemos isto na última recolha de Pedro Sena-Lino:

“todas as cidades estão ancoradas num verso

que alguém deixou aceso na boca de um morto”2

É uma voz que se exprime de maneira distinta, isolando-se do coro repetitivo da poesia portuguesa mais recente. Biofagia é o terceiro livro de um dos mais jovens poetas portugueses nasceu em 1977 que desde A Constelação dos Antípodas e As Flores do Sono3 revelara a singularidade expressiva face aos seus contemporâneos. Quando, hoje, os brasões das novas vagas geracionais ostentam especificidades estilísticas, estruturadas segundo uma discursividade sem inovações, temáticas saturadas e sem um confronto mais arriscado com a linguagem, é de louvar que um poeta recuse tais pressupostos.

Há autores assim, permanecem como satélites, apartados da órbita a que pertencem, distantes do tom que impera na altura, alheios aos modismos epocais, arrogando para si uma independência em relação aos sectarismos. Este autor tem uma vantagem: está só e parece falar para bem poucos. Na verdade, situa-se num território exclusivo e detém uma legitimidade imaginativa para ocupar um lugar de relevo.

Pedro Sena-Lino mantém-se impermeável à linguagem chã dos seus companheiros de geração e, para além disso, baralha a sua descendência. Aproximando-se de um tom litúrgico, desesperado e conflituoso, converge para uma religiosidade que abandona e desfigura, à semelhança de Daniel Faria:

“fiz do livro um corpo bíblico de mim

e do Deus vulgar por minha causa

penetrei o corpo à esquina do calvário

e Jerusalém nem por isso ficou presa a minha língua”4

Dentro da temática da infância, é de sublinhar o poema estranhíssimo, “primeira morte”, que traça um paralelo com um poema de Blaise Cendrars, “Le ventre de ma Mère”. Ao perseguir uma estilística própria, o poeta combina a ausência de pontuação, procurando experimentar vários timbres:

“sou humano porque a minha linguagem vive

corre de um denso que não toco ou vejo

mas que me corre o sangue como um estado

me surpreende o nada que me anula

eu violado por mim próprio

palavra meus olhos e meu féretro

meu espelho de ti eu me convoco”5

Mas é o aspecto virulento que condiciona as suas imagens:

“comíamos poemas pela mesma boca e

depois nos vestíamos de latitudes densas

para sabermos pisar o mundo morto”6

determinando assim a voz autêntica de um poeta a imprimir a sua inscrição:

“dá-me o prazer carnívoro de me escrever

de me deitar rasgado pelo texto fora

comendo os braços de mágoas e a pedra em sangue

(…)

escrevendo-me noutro corpo que me leia”7

1 Biofagia, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2003, p.81, publicado no jornal Expresso.

2 A Constelação dos Antípodas, Lisboa, Litera Pura, 2000, As Flores do Sono, Litera Pura, 2002

3 Op. Cit., p.35

4 Idem, p.35

5 Ibidem, p. 31

6 Ibidem, p. 21

7 Ibidem, p. 42

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



HORROR E MEMÓRIA

Ao findar a década de 80, Al Berto publicou O Livro dos Regressos onde encontramos o seguinte verso:

“regressas depois aos corpos e às cidades

enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita

o amargo medo desta década sem paixão”2

A sequência temporal e as circunstâncias pessoais da vida do poeta levaram-no a retomar esta visão com uma mudança de sentido em que o apelo da consciência do tempo invoca os detritos do passado para reactivar um discurso aparentemente saturado. O dizer em que o poeta mergulha e se debate impõe-se com um tom complementar:

“ouço o atlântico uivando de abandono

enquanto os dedos se cansam a pouco e pouco

na lenta escrita de um diário - depois

fecho o mapa e vou

pela crueldade desta década sem paixão”3

O que, a princípio, surgia como movimento apreensivo, capta agora toda a implacabilidade:

“na fissura deste tempo pestífero

que já não lhes pertence”4

Sem o jorro do confessionalismo das décadas anteriores, dir-se-ia que nos anos 90 o seu processo de escrita acabou por salvar só os pontos nucleares da sua poética. Temáticas como a marginalidade nocturna, a rememoração da infância, a posse e a entrega ao destino, são moderadas pela abjecção intensa, o lirismo elevado ao cansaço:

“quantas áfricas murcharam na boca do amor?

(…)

quantas feras despedaçadas foram comidas ao

/entardecer

quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da

/paixão”5

Horto de Incêndio é, sobretudo, um livro onde a “andeken” erotizada da realidade exerce o travestimento compulsivo de uma escrita crepuscular ferida pelo impacto inesperado da “velocidade desse mesmo tempo” que devora a beleza e a experiência do poema:

“esperas acordado sem sono

que a temperatura da casa funda

com a temperatura incerta do mundo

depois

escreves exactamente isto: o horror dos dias

secou contra os dentes - e rouco

dobrado para dentro do teu próprio pensamento

ferido

atravessas as sílabas diáfanas do poema”6

Enclausurado na fragilidade do corpo que denuncia o seu declínio, o sujeito procura regular a memória e a consciência do horror iminente:

“vês no espelho o homem

cuja solidão atravessou quase cinco décadas e

está agora ali a olhar-te - queixando-se da tosse

da dor de dentes e do golpe que a lâmina fez

(…)

não sei quem é - sei porém que vai afogar-se

naquela superfície clara quando dela se afastar e

abrir a porta para sair de casa murmurando: tudo

vem ao chamamento

por dentro do clamor da noite”7

Movido ainda com o ardor da permanência, o poeta anseia afirmar a sua imagem projectada nas palavras. O narcisismo feroz dessa poesia dramatiza a contemplação directa da ruína do corpo à procura de si nos vestígios que o passado e o presente deixaram:

“os poemas adormeceram no desassossego da idade.

fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais

curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me

as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e

nada escrevo.

o regresso à escrita terminou, a vida toda fodida - e

a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar”8

É nesta luta entre o horror e a memória, a sublimidade efémera e os despojos do seu próprio mundo que o poeta liberta o fluido poético, amparado na brandura grotesca dos factos vividos:

“arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas nocturnas”9

Embora esteja no centro da circunvolução do mal, “apesar de tudo”, o impulso do poeta não se detém perante o perigo e a dúvida, as palavras devem testemunhar:

“te escrevo

sentado na parte mais triste do meu corpo

noite dentro

a boca a encher-se-me de ossos - até que irrompa a manhã

e os tiros recomecem

e a cinza do cigarro caia no chão

e em mim cresça uma alegria maligna”10

A perdição das cidades impressa na epiderme do poeta é o testemunho inequívoco do que viveu, entrevisto agora com a melancolia anunciada noutros textos, mas Al Berto convoca o distanciamento para metaforizar o pânico silencioso oculto no movimento do mundo:

“mantenho-me de pé e fumo

dentro deste túmulo de incertezas onde

nos encontramos de mãos enlaçadas à espera

que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos

obrigados a vender o corpo já usado

aos insuspeitos violadores de poemas”11

Com Horto de Incêndio, Al Berto conseguiu abolir os excessos a favor da contensão, a certeza em vez da dúvida, e brindou-nos com um dos mais altos momentos da sua poesia:

“para te manteres vivo - todas as manhãs

arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e

o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho

regas o coração e o grande feto verde-granulado

(…)

passa um bando de andorinhões rente à janela

sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo

donde se soltaram as abelhas incompreensíveis

da memória”12

1 Horto de Incêndio, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, publicado no jornal Expresso.

2 O Medo, Lisboa, Contexto, 1991.

3 Op. Cit., 54

4 Idem, p. 27

5 Ibidem, p. 70

6 Ibidem, p.22

7 Ibidem, p.59

8 Ibidem, p. 40

9 Ibidem, p. 36