segunda-feira, 1 de novembro de 2010


A PALAVRA ABENÇOADA

Creio que há muitos poetas com talento, mas pouquíssimos têm realmente o dom. A originalidade de um autor desta estirpe cria sempre uma profunda impressão, porque está imunizada contra os modismos e arma as suas bases num espaço particular de permanência e universalidade. Daniel Faria publicou várias obras no início dos anos 90 Uma Cidade com Muralha, Oxálida e A Casa dos Ceifeiros , e os dois volumes aqui comentados2. Tudo o que o autor deixou publicado se resume a isto, e não é pouco.

A inscrição póstuma deste poeta tem um significado especial, porque, tendo vivido praticamente alheio ao circuito institucional, além de se ter dedicado à paróquia de Santa Maria de Fornos, em Marco de Canaveses, e aos estudos no Porto, era conhecido por um grupo restrito de leitores. Acresce que geriu a sua poesia de um modo peculiar, liberto da supremacia da ingenuidade que assoberba muito do que se produz hoje. Mantendo-se distante dos condicionamentos, das temáticas frugais, “dos logrogrifos e das logomaquias” de que falara Ernesto Sábato. Face aos seus contemporâneos, Daniel Faria impôs-se silenciosamente com o poder do seu verbo, sem necessitar dos circuitos dos prémios e dos encontros literários para afirmar a sua voz. De facto, aquilo que este poeta publicou em vida bastou para lhe cativar um lugar precioso no panorama da poesia mais recente.

São poucos os poetas que consolidam uma estilística distintiva. A poesia deste autor é, simultaneamente, terna e clássica, violenta e espiritual:

“Encosto-me à morte sem amparo ou sombra

como o grão

abeiro-me da flor que virá e venho

à superfície do teu sonho

Como se acordasse a mão que semeia

No coração lavrado de quem faz a ceifa

Rebento no interior da morte como o trigo”3

Numa passagem de L’Espace Littéraire4, Maurice Blanchot assevera que “o poema está vinculado a uma fala que não se interrompe porque não fala, é(…) O poeta é aquele que ouviu esta fala, que transformou-se no intérprete desta fala e lhe impôs o silêncio ao pronunciá-la”. Há um sentido de posse a libertar-se desta poesia; posse da linguagem autêntica em que cada poema privilegia a distinção da voz, particulariza a expressão, o apelo do verbo quer fixar a sua morada:

“Voz no vento passando entre poeira

Edifício

Árvore noutro poema

Fico à sombra da vide e do esteio no Outono

Enxerto a luz

Em tudo o que nomeio”5

As imagens que percorrem o horizonte desta poesia disseminam-se na recorrência perceptiva do mundo rural, uma escala sugestiva intensifica a sua projecção:

“Muito pouco

Restará

Depois da fome o sabor do pão

Depois da sede o correr da água

O feixe de lenha à cabeça

Da mulher incendiando

O cair da tarde”6

A lírica de Daniel Faria organiza-se por intermédio da religiosidade. Num determinado momento o poeta desata o nó desta relação que eu chamaria “teopoética”, e acaba por ladear a apreensão sugestiva do mundo. Profundamente consciente do seu ofício, ele lê o mundo e interpreta-o segundo a representação ambígua e, às vezes, telúrica:

“Poisa devagar a enxada sobre o ombro

já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas

A lâmina contra o cansaço”7

Enquanto muitos dos seus companheiros de geração estão naquele estágio em que, como diria Malherbe, “resta saber se os frutos corresponderão à promessa das flores”, Daniel Faria surgiu com uma voz madura, com a consciência poética susceptível de confrontar a si mesmo e aos seus pares. Não estou a incorrer em erro ao afirmar que era uma das maiores promessas da jovem poesia portuguesa.

Felizmente, a sua história está só a começar:

“Estou ligeiramente acima do que morre

Nessa encosta onde a palavra é como pão

Um pouco na palma da mão que divide

E não separo como o silêncio em meio do que

/escrevo

(…)

Ando ligeiro acima do que digo

E verto o sangue para dentro das palavras

Ando um pouco acima da transfusão do poema

(…)

Porque ando acima da força a saciar quem vive

E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe”8

1 Homens que são como lugares mal situados, Porto, Fundação Manuel Leão, 1998; Explicação das Árvores e de outros animais, idem; publicado no jornal Expresso.

2 Após a publicação deste texto (01/07/2000), a obra de Daniel Faria ganhou uma enorme notoriedade e foi alvo de reedições sucessivas, que culminou com o volume onde se reuniu a sua produção poética, Poesia-Daniel Faria, Quasi Edições, 2003.

3 Op. Cit., p. 17

4 L’Espace Litteraire, Paris, Gallimard, 1985.

5 Op. Cit., p.18.

6 Idem, p. 90.

7 Ibidem, p. 77.

8 Ibidem, p. 15.

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