A BELEZA QUE RESTA
Se observarmos o percurso da poesia portuguesa contemporânea, notar-se-á um facto sintomático, ou seja, a presença feminina compareceu de forma recatada, revelando obras que aos poucos conseguiram conquistar um espaço próprio. Neste sentido, a poesia de Florbela Espanca determina o aspecto precursor, adquirindo contornos específicos. A partir da segunda metade do século XX, a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen concentrou a atenção ao desenvolver uma poética surgida nas páginas dos “Cadernos de Poesia”, e em outras revistas que animaram o panorama literário a partir dos anos
Os primeiros sinais que indicam a busca de uma expressividade moderna sobressaem na obra de Sophia. Atenta ao fenómeno poético, desenvolveu uma estilística inebriada pelos reflexos da tradição clássica, sem perder de vista a consistência da realidade como suporte da sua poética. Duas décadas mais tarde, desponta uma voz a configurar um tratamento inesperado da linguagem e a experimentação renovadora – tratava-se de Luiza Neto Jorge que começara a publicar em 1960. Deixou uma obra que totaliza sete livros de poesia2, inúmeras traduções lapidares, escreveu ainda para teatro e cinema. A sua poesia atingiu um patamar singularíssimo onde o discurso poético é trabalhado segundo o aprofundamento metafórico.
Desde a publicação do seu primeiro livro As Cidades Indefesas, Fátima Maldonado mostrara um tom que transitava entre a intensa percepção da feminilidade e um acentuado sentido do mundo e do quotidiano. Agora, a sua visão crítica do mundo parece radicar nos vislumbres da realidade condicionados por uma pulsão interna implacável. A autora tem vindo a operar uma engrenagem poética em que a detonação discursiva se equilibra num ritmo austero, impregnando-o com a utilização eficaz de um léxico apurado. A sua poesia transpôs a marca erótica inicial para cultivar um universo violento e melancólico, vislumbrando os despojos quotidianos, imbuída de uma consciência céptica:
“Desce-se a rua
na esperança de esquecer
o uivo da matilha,
a beleza que resta
acorre-nos às feridas
unguentos depõe
nas zonas infectadas”3
Apesar de manter o ritmo característico, Fátima Maldonado traz agora à superfície a erupção violenta onde fervilham a paixão e o ódio, a beleza e o horror, o prazer e a repugnância. Trata-se de uma cadeia de conteúdos cujo fim é “cadaverizar” a realidade. O acúmulo de imagens de um mundo em declínio traduzem o esgotamento que o poeta alegoriza, daí a captação das imagens em torno da sujidade urbana e humana como o suor, o muco, as secreções, é a deriva residual:
“Nesta cidade onde vamos soterrados
horrendos cheiros atacam
dos depósitos,
amêijoas decompostas reluzem
em sucos opalinos,
compõem ritmos
onde sucubem fórmulas
nos restos da maresia”4
Em vez de apenas descrever a gordura dos corpos em ardor erótico, Fátima Maldonado deforma-os, exibindo a sua decadência. Numa acepção possível, diria que esta poesia se investe de um maneirismo imagético da decomposição em que a assunção da náusea é o principal instrumento perceptivo:
“Sente-se o bafo, o muco, o ranho
o rasto que nos deixa
lesmático o coturno
cumprindo cada pedra
até subir à ara
do sórdido jornal”5
Estamos diante daquela “aversão pelo real”, de raiz baudelairiana – só que Fátima Maldonado anatematiza o real com um alto grau de radicalidade.
Embora as poéticas destas três autoras sejam distintas entre si, coexistem variados pontos de contacto que interligam-se nos exercícios processuais de cada uma, e implantam paralelismos temáticos específicos. Um contraste entre os temas operados ajudar-nos-á a aclarar as fronteiras.
Enquanto Sophia de Mello Breyner enuncia a sua distanciação das coisas – “Eu me perdi na sordidez do mundo/ Eu me salvei na limpidez terrena” –, as outras duas autoras aceitam esta sordidez. Sophia quer justapor a beleza do mundo, Luiza ataca-o pela ironia e Fátima acicata-o. A sensibilidade de Sophia é serena, a de Luiza é enleadora e a de Fátima nervosa. Sophia evoca o amor, as outras a paixão e o desejo, só que em Fátima a relação paixão/desejo é sempre dolorosa:
“Ela degolou tudo,
honrei-lhe o corpo
cravando tão fundo quanto pude
os pregos da paixão,
entrelacei espinhos de amor
numa coroa real”6
“Un si funeste désir”, diz um título de Pierre Klossowski, que poderia nomear esta poesia. Ao helenismo estóico de Sophia, a asserção dionisíaca de Luiza, as experiências lexicais de Fátima. A beleza para Sophia é clássica e evocatória, para Luiza ironicamente erótica, para Fátima reveste-se de uma malignidade interior. Sophia mascara a sua eroticidade, as outras exibem-na. Sophia é transparente, Luiza é matericamente surreal e Fátima densa. O amor é sempre resignado e cru em Luiza e Fátima, enredado num turbilhão de referências e renúncias; em Sophia, pelo contrário, é platónico.
A poética de Sophia é consagratória, a das outras inquiridoras e mergulhadas no cepticismo, daí o aspecto fragmentário de Luiza, as ambiências “sujas” de Fátima. Sophia reclama um classicismo que se antepõe ao testemunho das ruínas dos corpos, do mundo e da linguagem de Luiza e Fátima. Sophia celebra a imanência da palavra. Luiza a experimenta, e Fátima entrega-se à velocidade do tempo e à dissolução da sua linguagem.
A celebração das musas, do corpo, do sexo, e da linguagem são características latentes no conjunto poético destas três autoras. No caso mais actual – Fátima Maldonado –, é a manifestação ousada e o mergulho corajoso nos subterrâneos do imaginário feminino, dando seguimento a um percurso galvanizado sob o poder da lucidez e do deslumbramento estilístico.
1-Cadeias de Transmissão, Lisboa, Frenesi, 1999, publicado na revista LER.
2- in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
3- op. Cit., p. 221
4- idem, p. 191
5- ibidem, p. 191
6- ibidem, p. 184
Um comentário:
Salve Jorge!
Bonito o blog!
Que mulheres porretas!
Já não basta aquela precursora que se suicidou...
Abraços
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