sábado, 23 de outubro de 2010



O MINUCIOSO TRABALHO DA ABELHA

“Deixai que escreva pela noite dentro:

sou um pouco de dia anoitecido

mas sou convosco a treva florescendo”

Fazer uma curta biografia de um poeta como Carlos de Oliveira é deparar-se com poucos dados e a ausência de pormenores. Que nasceu em Belém do Pará, em 1921; que foi um nome central da literatura portuguesa a partir da década de 40; que esteve ligado ao neo-realismo; que se tornou um defensor de uma escrita rigorosíssima. Tudo isso aprende-se um pouco. Mas como foi a infância e a juventude deste poeta, de que forma isto contribuiu para gizar o seu carácter e, por essa via, delimitar algumas balizas da sua obra?

No início do século XX, Portugal assistiu a vagas de emigração para várias partes do mundo. Na região da Gândara, o Brasil foi o destino para muitas famílias e aventureiros. O avô do poeta fora para aquele país deixando para trás o filho, Américo de Oliveira. O rapaz fez os estudos apoiado pelo dinheiro que o pai enviava para cá, concluiu a 4ª classe, o liceu e entrou para a Universidade de Coimbra onde se formou em Medicina. Depois casou com uma jovem da Lousã, nascida no Brasil, que viria a ser a mãe do poeta.

A crise política europeia acelerou-se até rebentar a I Guerra Mundial. O jovem médico é mobilizado para a frente de combate na Flandres, onde é gaseado e perde um pulmão. Volta para Portugal e estabelece-se próximo da actual Vila de Febres. As dificuldades são muitas e o dr. Américo de Oliveira aguarda instruções do pai para tentar a vida no Brasil. É aconselhado a partir junto com a mulher rumo a Belém do Pará, em plena Amazónia brasileira. Segundo o único amigo de infância vivo do poeta, Manuel Augusto Mendes:” A mãe do Carlos fica grávida cá e vai ter o filho em Belém do Pará. A senhora nunca mais teve saúde não se sabe porquê, e os médicos de lá recomendaram-lhe regressar a Portugal”. As biografias do poeta apontam 1923 como o ano do regresso da família. Mas é provável que tenha ocorrido em 1924.

A família retorna à Gândara onde o pai concorre a um lugar para médico municipal. Os primeiros tempos não foram fáceis. O jovem poeta começa os estudos primários em Febres. A professora da escola tem a seu cargo 145 alunos, muitos deles pobres como a Gândara que não era nenhuma terra de harmonia. Carlos de Oliveira irá moldar ao longo da vida uma consciência atenta, o profundo humanismo e a marca solidária com uma postura perante a realidade que nos seus livros acabaram por adquirir um sentido crítico. A aptidão literária desponta nos primeros anos de escola, revelando-se através da escrita. Todavia, não podia continuar os estudos em Febres, seguiu então para Cantanhede e fez dois anos do ensino secundário, em 1933. Depois continuou no Liceu D. João III, em Coimbra. Nesta cidade, faz o curso de Histórico-Filosóficas, é já um pouco conhecido entre os estudantes - publicara Cabeças de Barro, em 37, em parceria com Artur Varela e Fernando Namora, e em 42, Turismo. Um dos seus romances mais conhecidos, Casa na Duna, é dado à estampa em 1943. A obra que renegou para sempre, «Alcateia»2, surge em 44, foi logo alvo de perseguição da PIDE. Em 1947 concluiu a licenciatura, no ano seguinte casa-se com Ângela Oliveira e mudam-se para Lisboa.

Quando chegam à capital, no início da década de 50, enfrentam o périplo da procura de casa e emprego. O poeta fora colocado numa escola técnica, embora o seu desejo fosse seguir a carreira diplomática. Publicara quatro livros de poemas e três romances cuja ressonância se alastrara pelo país. O eco do seu trabalho chegou, também, às instâncias do Estado Novo, não demorou a ter a as portas subtilmente encerradas. Um amigo fê-lo ver que, se tentasse a diplomacia, o seu nome seria logo reconhecido com as óbvias consequências, e chegou mesmo a procurar um contacto no Ministério dos Negócios Estrangeiros daquela época, mas recebeu um conselho similar. O poeta passou a exercer apenas funções efémeras em jornais e revistas ou colaborações irregulares, experimentou a tradução, além de organizar edições como a «Obra Poética» de Afonso Duarte ou «Contos Tradicionais Portugueses», recolha feita com José Gomes Ferreira. É a dedicação integral à literatura. Em 1950 é publicado «Terra de Harmonia» - que incluía o livro Descida aos Infernos, e, em 53, outro marco da sua obra romanesca, Uma Abelha na Chuva.

Os encontros nos cafés lisboetas são um percurso diário; locais como o Tony dos Bifes, o Monte Carlo e o Monte Branco, faziam parte do seu roteiro onde trava amizade com Mário Dionísio, Augusto Abelaira, entre muitos outros. Um testemunho desta época, em que deambulavam várias figuras simbólicas do panteão literário português pelos bares e cafés, foi escrito por Maria Velho da Costa numa homenagem aos “três magos avançando numa ábside”, imagem que guardou dos poetas Gomes Ferreira, Herberto Hélder e Carlos de Oliveira entrando no café Monte Carlo. A escritora delineia o autor de Micropaisagem desta forma:”O terceiro homem vem todo por dentro. Tem a cara fechada e o olhar é esquivo, no chão as mais das vezes, como se caminhasse por hábito, por indícios, não precisasse, e até preferisse, não ver. É mais vagaroso que os outros e não há nele levitância ou emanação, excepto dirigida para dentro, alimentadora da compactez da passagem, pujança inflectida. Traz um livro na mão que Ramos num relance, mais que ler, decifra. São as obras completas de Mallarmé, da Plêiade. Não é um homem belo, embora talvez o tenha sido de rapaz, mas reservou-se. A maneira como baixa a cabeça a Ramos, um pouco lateralmente e sem sorriso, e mais com crispação de quem acena de dentro de um infindável desgosto ou temor, revelam porém hábitos de um grande apuro de elegância, esquecidos como uma educação que fica.”3. O tráfego de ideias pairava entre as mesas dos cafés, e o poeta era um visitante assíduo de muitos onde chegava sempre a seguir ao almoço.

No período do 25 de Abril passou a tarde a ouvir as notícias. A partir daí foi o corrupio imparável entre almoços, comícios e jantares, até o desencanto posterior. O poeta ainda chegou a ser sondado para ocupar um lugar no governo, mas recusou o convite. A sua obra entrou na fase final. Publica os dois volumes de Trabalho Poético em 1976, e em 1978 Finisterra. O último livro foi «Pastoral», de 1977, onde encontramos uma advertência, porventura, para entendermos a sua poética:

“Rodar a chave do poema

e fecharmo-nos no seu fulgor”

Entre a vigília e a pesquisa, o poeta mantinha um rigor obsessivo. Trabalhava lenta e silenciosamente5, a corrigir, a emendar, a recusar o fácil, a linguagem chã, procurando a palavra certa, a imagem exacta. Num trabalho que seria possível fazer um paralelo com a produção da cal - tão comum na região gandaresa -: queimando as pedras em altas temperaturas para transformá-las em pó, Carlos de Oliveira deixou uma das obras mais rigorosas da literatura de língua portuguesa.

A 1 de Julho de 1981, o poeta calara-se para sempre mas a sua obra continua a pulsar no nos no seu fulgor”4. Entre a vigília e revérbero instantâneo de um verso, de uma imagem, neste trabalho nocturno que procurou a essencialidade e através de palavras como cal, adobo, duna, pinhais, Gândara, ressuscita a cada nova leitura.

**

Ouvir um poema é uma experiência distinta da leitura propriamente dita. Dizer um poema é o momento da liberdade formal, a palavra ascende das grades da página para ser impressa noutro limite. O som toma conta dos sentidos, uma fissura se abre entre a visão e a audição, e somos invadidos por uma nova apreensão das palavras; as capacidades imagéticas são superadas pela transparência melódica. O poema, dito pelo próprio autor ou por um intérprete, estabelece correspondências determinantes no que diz respeito ao som, o ritmo, a intensidade. Ganha outra energia, sem perder, é claro, o poder original quando lido no silêncio da solidão.

A grande maioria dos poetas não diz os seus poemas, e nem toda poesia se adapta à declamação. Muitos autores exercitaram a verve interpretativa. Os poetas futuristas russos foram exímios, Maiakovsky chegou a reunir um público considerável só para ouvi-lo. W. H. Auden gravou vários poemas ditos por si mesmo, mas o trabalho “An Evening of Elizabethan Verse” é extraordinário. A voz grave, maciça de Ezra Pound, com um acento quase germânico, deixa qualquer ouvinte sobressaltado. A sua voz amplia a marca frenética da sua poesia e poemas como “Sextina: Altaforte”, “Piere Vidal Velho” ou alguns “Cantos” ditos por ele são inesquecíveis. Dylan Thomas é, talvez, o exemplo genuíno do bardo completo, quem tiver a oportunidade de ouvir a sua voz não esquecerá a experiência. O ritmo severo e quase “cantado”, projecta-nos na espiral da sua energia vocabular. A leitura do poema “Death Shall Have no Dominion” ou o lirismo com que diz “Winter’s Tale” são momentos únicos.

Infelizmente o autor de «Sobre o Lado Esquerdo» não nos deixou o registo da sua voz. A poesia de Carlos de Oliveira funciona na perfeição para quem resolver dizer os seus poemas. Gastão Cruz é o responsável pela selecção dos poemas do autor. A sua escolha parece ter visado aqueles cujo vigor e funcionalidade tornam a interpretação maleável na voz de João Grosso.

A interpretação expõe a limpidez da vibração, da sonoridade residual das palavras, marcando o tempo e o espaço de cada texto. Carlos de Oliveira era um metrónomo rigoroso, há uma certa cadência que se evidencia, como no poema “Descida aos Infernos”, em que a sucessão de vocábulos onde ressoam a vogal u, parece absorver a turbulência oculta no texto:

“Me arrastam tumultuárias

até ao núcleo do tumulto,

lá onde pulsa à beira do seu túmulo

o coração da terra para sempre insepulto”.7

O poeta faz uso desta mecânica vocabular explorada até uma fronteira decisiva; o corpo e o ritmo textual estilhaçam-se para sustentar a harmonia. É a reverberação de uma poética ao encontro do momento inaugural:

“Esta coluna

de sílabas mais firmes

esta chama

no vértice das dunas

fulgurando

apenas um momento,

este equilíbrio

tão perto da beleza,

este poema

anterior

ao vento”8

A experiência é levada ao extremo até um dos últimos livros, «Micropaisagem». O sentido deste movimento é a inscrição da(s) palavra(s) no espaço e no tempo, como se estivesse a cauterizá-la(s) num limbo impenetrável.

A incidência constante do gerúndio é outro aspecto que atravessa a sua poesia, mas tal recurso é usado de acordo com a rigidez sincrónica, como podemos ver nos poemas “Descida aos Infernos” ou “Xácara das Bruxas Dançando”:

“E o tempo murchando

a luz de idos loiros.

Ama, até quando

Estaremos chorando

os castelos moiros?

Lá vão naus da Índia,

lá se vão tesoiros.

E as bruxas dançando

e os ventos secando

as laranjas de oiro.”9

João Grosso perfila-se ao lado de artistas como Laura Soveral e Maria Barroso que também interpretaram versos do poeta. Três momentos a reter do trabalho do “diseur”: “Descida aos Infernos”, “Instante” e “Soneto Fiel”. São a homenagem cristalina a um dos mais altos poetas da língua portuguesa.

1 Texto baseado numa reportagem sobre o poeta Carlos de Oliveira

2 Cito a edição Obras de Carlos Oliveira, Lisboa, Editorial Caminho, 1992.

3 Lucialima, Lisboa, Publicações D.Quixote, 1983, (4ª ed., 1997), p.242

4 Op. Cit., p.392

5 Ver sobre este assunto Carlos de Oliveira e a Referência em Poesia de Rosa Maria Martelo, Porto, Campo das Letras, 1998.

6 Poesias de Carlos de Oliveira, poemas ditos por João Grosso, livro e cd, selecção de Gastão Cruz, Presença/Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 1995.

7 Op. Cit., p. 39

8 Idem, p.61

9 Ibidem, p.21

segunda-feira, 18 de outubro de 2010





O MIOLO DA LÍNGUA

Foram ultrapassados inúmeros entraves, polémicas entre os herdeiros do escritor e a projecção afirmada como romancista para que a tão almejada edição de Magma pudesse vir à luz. Equacionados todos os obstáculos, meio século depois o público pôde finalmente aceder aos poemas escritos na juventude por Guimarães Rosa e a primeira obra do autor de Grande Sertão: Veredas, que lhe valeu um prémio da Academia Brasileira de Letras, em 1936.

Há por detrás destes factos um pormenor de ordem jurídica que impediu a publicação do livro. Guimarães Rosa deixara a sua obra dividida entre três herdeiros, os desentendimentos dificultaram sempre um acordo com a editora. Contudo, chegaram a um consenso, eliminando a discussão que se avolumou nas últimas décadas. A pressão cada vez maior de leitores, críticos e editores fez com que os responsáveis por essa lacuna literária tomassem consciência da necessidade de acabar com o ineditismo de Magma.

Guimarães Rosa tinha 28 anos quando recebeu o galardão pelo seu livro de poemas, mas o baptismo como romancista dar-se-ia dez anos depois com Sagarana. Toda a sua fama se estruturou sob o impacto da poderosa imaginação ficcional e estilística do autor. Como se tratava do primeiro livro de um escritor consagrado, a curiosidade era grande, já que a maioria dos textos permanecia desconhecida. A rareza com que foram divulgados incitava a curiosidade dos leitores “rosianos”. Mas quando se folheia os primeiros poemas, o deslumbramento diminui. O que se apresenta diante dos olhos é um poeta bem próximo das experiências dos primeiros modernistas brasileiros. Distante da prosa inovadora assente nas páginas da ficção produzida durante 30 anos de vida literária, Magma acaba por ser um testemunho genésico, o exercício requerido para o autor se lançar em direcção ao voo estilístico que praticou. Neste sentido, o poeta Guimarães Rosa não fez mais do que seguir modelos ao retomar as experiências inauguradas por Bandeira, Oswald de Andrade ou Mário de Andrade, sem acrescentar outras conquistas de maior relevo.

Os dispositivos processuais estão bem visíveis. Amparado pelo regionalismo coloquial, submete o discurso a um resgate de personagens e lendas brasileiros interpenetrados por figuras mitológicas. Um aspecto original do mecanismo veiculado é, por exemplo, o poema “Iara”:

“Por entre os delfins, sentinelas de Possêidon,

afundam, suspensas, soltas, como grandes algas,

carregando os jovens afogados:

Ondinas das praias, flexuosas,

Nixes da água furtacor do Elba

(…)

Mas a Iara não vem!

Porque a Iara tem sangue,

Porque a Iara tem carne”2

É inevitável fazer a comparação com os modernistas, já que o tom elaborado não se distancia daquele ordenado pelos seus companheiros:

“Lá bem pra trás da boca aberta do rio

onde solta os seus diabos

o bicho feroz da pororoca,

ela ficou cheia de medo,

brasiliana, tapuia, morena”3

Mesmo quando usa o haicai explorado nos poemas “telegráficos” de Oswald de Andrade ou praticado por Guilherme de Almeida , o autor não expõe nenhuma novidade:

“Viajei toda a Ásia

ao alisar o dorso

da minha gata angorá…”4

Só em alguns casos o poeta consegue imprimir medidas genuínas:

“E ao acendermos as velas e as lanternas,

a treva se retrai, como um enorme corvo,

das paredes paleozóicas,

salitradas.

Subterrâneos de Poe, salões de Xerazade,

Calabouços, algares, subcavernas

(…)

do centro da terra,

buracos negros, onde pedras jogadas

não encontram fundo, como pesadelos

de um metafísico…”5

Tais textos demonstram que o poeta soube impor uma forma lapidar, uma percepção coloquial, assumindo um excesso barroco, próximo, às vezes, de um Lezama Lima:

“Uma Vanessa tropical travou na campânula

de uma ipoméia

o voo oscilatório e helicoidal.

Dobra o quimono de franjas sinuosas,

Marchetado e hachureado

com minérios de cobre:

auréolas, anéis, jóias concêntricas,

olhos de íris elétrica e de pupila enorme

ocelos de um leque de pavão.”6

A transgressão linguística arquitectada por Guimarães Rosa amparou-se numa profunda pesquisa da linguagem, secundando-a pela clivagem revolucionária dos temas regionalistas. Há nestes poemas algo que anunciava a viragem futura, embora não produzam o impacto imediato, não anulam uma leitura detida da obra inicial daquele que alterou os limites da literatura brasileira para sempre:

“Como quem fecha numa gota

o Oceano,

afogado no fundo de si mesmo…”7

**

Se estivesse vivo8, teria completado 88 anos. Era capaz de acompanhar as comemorações do 50º aniversário de Sagarana e 40º de Grande Sertão: Veredas distante da azáfama jornalística, da qual fugia, calado e discreto, não fosse ele de Cordisburgo, Minas Gerais. E se lhe perguntassem sobre a glória e o êxito, certamente a resposta seria o silêncio. Com Guimarães Rosa, o romance brasileiro atingiu a sua mais alta expressão ao gerar um abalo do qual não se recuperaria tão cedo.

Tinha três meses quando Machado de Assis faleceu, em Setembro de 1908. Fez os estudos e formou-se em Medicina. O jovem médico era respeitado pela entrega e a preocupação com os pacientes, a ponto de ficar marcado pela morte de uma pessoa. Rosa chegou a ser médico voluntário durante as convulsões políticas que rasgaram o Brasil dos anos 30. Embora tenha abandonado a Medicina, não esqueceu a experiência, ele mesmo fez o parto das filhas Wilma e Agnes. Desde a infância mostrara facilidade em aprender línguas, tanto que aos seis anos já dominava o francês. Conhecia o alemão, o inglês; lia italiano, sueco e russo. Estudou ainda a gramática e a sintaxe do húngaro, do malaio, do persa, do chinês e do japonês. Um amigo, sabendo desta tendência natural, convence-o a concorrer ao corpo diplomático do Itamaraty, onde é admitido no Ministério do Exterior, em 1934.

Em 1938 recebeu a nomeação como cônsul adjunto, em Hamburgo. Quando o Brasil cortou relações com a Alemanha, em 1942, foi preso com a sua segunda mulher, em Baden-Baden, onde permaneceram três meses. Antes do desfecho, Rosa e Aracy de Carvalho tinham ajudado judeus a fugir da Alemanha. Com o fim das negociações entre os respectivos governos, o casal foi enviado para Portugal e trocado por diplomatas alemães vindos do Brasil.

O livro Sagarana fora vencido no concurso a que o submetera. Guimarães Rosa não desistiu, reviu o texto, efectuando cortes e suprimindo algumas histórias. Publica-o finalmente em 1946 e tem uma recepção extraordinária. Em Portugal foi publicado em 1961. Óscar Lopes aproxima-o de Aquilino Ribeiro, e chama a atenção para o exercício inovador do escritor:

“Guimarães Rosa não se limita a reproduzir com filológica fidelidade o linguajar dos ‘geralistas’, tal como Aquilino não faz o simples traslado de um dialeto beirão nos seus recantos de implantação regional(…) E não requereria grande engenho nem saber linguístico para mostrar as mais características ‘inovações’ deste prosador; elas caminham, organicamente, no sentido da evolução mais espontaneamente criadora da língua portuguesa, sobretudo na sua variante idiomática brasileira”9

Completara 38 anos quando publicou Sagarana. O magma linguístico brasileiro conservava aí a sua pluralidade. O título é um neologismo híbrido composto pelo radical germânico “saga” narrativas históricas ou lendárias e o sufixo tupi-guarani “rã” ou “rana” ao modo de, à semelhança de. Íntimo conhecedor da geografia, da fauna e da flora dos Gerais, Rosa crismava o passo iniciático para percorrer as veredas da literatura brasileira.

O percurso do escritor pode ser compreendido como uma sucessão de experiências que duram uma década para se concluir. Depois de Magma em 36, Sagarana em 46, finalmente, Grande Sertão: Veredas em 56. Romance da dúvida e do simbolismo, o combate maniqueísta subjacente na voz de Riobaldo desperta a todo instante ambiguidades bem/ mal, homem/ mulher:

“eu careço de que o bom seja bom e o ruim, ruim, que de um lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza!”10

São vínculos tecidos através do sentido dúbio, metamorfoseados pela hibridez discursiva. Guimarães Rosa penetra no “miolo” da língua, consciente das transformações a executar. Mais do que a desintegração verbal, o projecto visa a amplitude da integração linguística. O virtuosismo quase jazzístico recupera tanto os efeitos da língua tupi, das matrizes arcaicas e clássicas, como os africanismos, deflagrando uma espécie de atomização anímica das palavras. Mário Vargas Llosa no prefácio que escreveu para a segunda tradução feita para o francês, intitulada Diadorim, sublinhou este aspecto:

“O Grande Sertão: Veredas é uma torre de Babel milagrosa, suspensa sobre a realidade humana, separada dela, no entanto viva. É um edifício mais próximo da música (ou de certa poesia) do que da literatura”11.

Os temas regionalistas da geração brasileira de 30 estavam esgotados. Guimarães desponta com um livro que corria o perigo de ser esquecido. O desafio implicava em estar dentro e fora da tradição, o escritor soube conciliar os opostos a todos os níveis, daí que a tentação fáustica e a hesitação homossexual de Riobaldo funcionem como alavancas para singularizar ainda mais a obra. Rosa eruditiza o folclore e folcloriza a erudição, universalizando a temática sertaneja. Riobaldo conta os seus casos a um interlocutor que não se define, a sua vida como chefe de jagunços, as lutas, a infância, o pacto com o demónio e o amor que dedica ao companheiro Diadorim. A dúvida e a indefinição cerceiam a estória, Riobaldo não tem a certeza de que firmou o pacto demoníaco, não sabe se realmente gosta de Diadorim, sendo ele homem, até à revelação final. O Grande Sertão: Veredas é o ápice da arte de Rosa, mas ele não ficou por aqui. Em 1962 publicou Primeiras Estórias, onde emerge um dos mais belos contos da língua portuguesa, “A terceira margem do rio”12.

Fora eleito para a Academia em 63, mas adiou a entrada, pois acreditava que morreria se algum dia viesse a tomar posse. 1967 é o ano de Tutaméia, livro difícil e polémico. Por esta altura, actuou como relator do debate promovido pelo Conselho de Cultura para discutir o acordo linguístico luso-brasileiro; era contra o projecto e a sua decisão contou com o apoio de Cassiano Ricardo, Adonias Filho e Rachel de Queiroz. Por fim, resolve aceitar a vaga da Academia, e três dias depois, a 19 de Novembro de 1967, um enfarte fulmina-o na sua mesa de trabalho.

Desaparecia assim o escritor, médico e diplomata, figura tímida que coleccionava gravatas-borboleta e sapatos, pensava em escrever um tratado sobre brinquedos para crianças calmas e admirava a astrologia. A sua travessia deixou-nos obras memoráveis e um mundo encantado pela força transgressora da linguagem:

As coisas assim, a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!”13

1 Magma, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1997, publicado no jornal Expresso.

2 Op. Cit., p.16/17

3 Idem, p.18

4 Ibidem, p. 34

5 Ibidem, p.35

6 Ibidem, p.125

7 Ibidem, 133

8 Texto publicado por ocasião da efeméride de Sagarana e Grande Sertão: Veredas.

9 Sagarana, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1982, p. XXXIV

10 Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1979.

11 Diadorim, Paris, Albin Michel, 1991.

12 Primeiras Estórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 32

13 Op. Cit., p.319

quarta-feira, 13 de outubro de 2010


VIDA E MORTE CABRALINA

Após o falecimento de Carlos Drummond de Andrade, em agosto de 1987, para todos os efeitos o pernambucano João Cabral de Melo Neto ficara como último grande poeta brasileiro vivo. No dia 9 de Outubro de 1999, calou-se a voz enxuta, exacta e síncrona daquele que Vinicius de Moraes chamara de “camarada diamante”. A sua obra é uma das mais arrojadas dos últimos 50 anos. Como o martelar ritmado do ferreiro que provavelmente entreviu em Carmona, Espanha - cantado num poema de Crime na Calle Relator - o ataque cardíaco que o vitimou em sua casa do Rio de Janeiro, foi uma estocada fatal na poesia brasileira.

Nascido em Recife, a 6 de Janeiro de 1920, o poeta passou boa parte da infância no engenho de açúcar do pai, a conviver de perto com a paisagem árida da região, o vento dos canaviais e os homens de mãos coriáceas como o sertão nordestino fustigado pelas secas sucessivas. Pelo lado paterno, o poeta herdou toda uma genealogia literária que surge com António Moraes e Silva, o autor do célebre dicionário, de quem era 4º neto, até o parentesco com Manuel Bandeira e com o sociólogo Gilberto Freyre, seus primos.

Fez a sua formação em Recife e aguardou até aos vinte anos, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1942, onde concorreu para o Itamaraty, ingressando depois na carreira diplomática. É neste ano que publica o seu primeiro livro, Pedra do Sono, uma obra nitidamente influenciada pelo surrealismo. Ao chegar ao Rio de Janeiro, visita Murilo Mendes, contacta com Drummond e fortalece a amizade com Bandeira. Em 1945 aparece O Engenheiro e dois anos depois deixa o Brasil para assumir o seu primeiro posto diplomático em Barcelona. Entre 1947 e 1987, João Cabral viveu fora do Brasil. Neste espaço de tempo, serviu como diplomata em Londres, Sevilha, Marselha, Madrid, Genebra, Dacar, Quito, Tegucigalpa e Porto, entre outras capitais.

Barcelona foi, de certo modo, uma cidade fundamental para os contactos que manteve. É aí que se aproxima do poeta Joan Edoardo Cirlot, em seguida tem o encontro decisivo com o grupo de vanguarda “Dau Al Set”, formado na sua maioria por artistas plásticos. Torna-se amigo de Joan Brossa, Emílio Boadella, Joan Ponç e Antoni Tàpies, além de conhecer o poeta Carles Riba que traduz para o português. Data ainda deste período o encontro com Joan Miró, sobre quem escreve um ensaio, em 1950. A actuação no meio intelectual barcelonês é intensa e resolve fundar uma pequena editora que funciona através de uma prensa manual que o próprio poeta opera. É aí que publica o primeiro livro de sonetos de Brossa, Sonets de Caruixa, enquanto trabalha na redacção dos poemas de Psicologia da Composição e O Cão sem Plumas. A temporada espanhola estender-se-à depois para Sevilha e posteriormente Madrid.

Um aspecto peculiar que se nota na poesia de João Cabral é o paralelismo entre a Espanha e o Nordeste brasileiro que o poeta consolidou na sua obra. E foi de tal forma determinante que em alguns dos últimos livros - Crime na Calle Relator, Sevilha Andando e Andando Sevilha -, agudiza-se o processo.

Em 1950 o poeta é transferido para Londres, onde faz novas amizades, começando a ler com maior acuidade a poesia anglo-saxónica, nascendo a admiração por autores como W. H. Auden, Dylan Thomas e os metafísicos ingleses. Preferia John Donne e George Crabbe, e se desinteressa de Stephen Spender, depois de saber que este poeta traduzira Lorca sem conhecer o espanhol. Nesta época vê-se obrigado a regressar ao Brasil acusado de ter ligações com o comunismo. Aterra no Rio de Janeiro em 1952, sendo suspenso das suas actividades. Aproveita o período e trabalha como jornalista; em 54 consegue ser reintegrado com a intervenção de D. Hélder Câmara junto das autoridades do Itamaraty. Em 56 é-lhe permitido retomar as funções diplomáticas. Dois anos mais tarde segue para Marselha.

No final da década de 50 o poeta publica Duas Águas, a primeira reunião da sua obra poética. João Cabral é considerado nesta altura um dos poetas mais importantes do Brasil. Se tivermos em conta que naquele momento Manuel Bandeira era reconhecido como o grande senhor da poesia brasileira, que Drummond escrevera já alguns dos maiores livros de poesia de língua portuguesa - Claro Enigma e A Rosa do Povo - e Jorge de Lima produzira este poema magnífico que é Invenção de Orfeu, o percurso a seguir por qualquer poeta era longo e difícil. Contudo, João Cabral legitimou a sua dicção através de um tom expressivo em que o sertão e as gentes do nordeste brasileiro accionam a sua palavra poética. Escreve Quaderna que será publicado em Lisboa, em 1958. Dois anos depois, Alexandre O’Neill organiza uma antologia para ser publicada em Portugal.

A sua poesia obtém certa popularidade com a montagem do auto de natal Morte e Vida Severina pelo Teatro da Universidade Católica de São Paulo. Pedem a autorização ao autor, informando-o que o responsável pelas composições será Chico Buarque. O espectáculo é montado, as críticas são entusiasmadas e a peça segue para o festival de teatro de Nancy, na França onde arrebata o prémio de melhor autor. Em 1969 muda mais uma vez de posto diplomático para Assunção, no Paraguai, antes disso toma posse na Academia Brasileira de Letras. Finalmente em 72 vai para o Senegal, agora como embaixador. Aproxima-se do então presidente Léopold Sédar Senghor. Nesta fase, João Cabral aguça a sua poesia com o livro A Escola das Facas, publicado aquando da sua transferência para o Equador, em 1979. Era a época da abertura política brasileira comandada pelo General João Batista Figueiredo. João Cabral tem sessenta anos e uma obra consagrada.

No início dos anos 80 o poeta é recolocado em Tegucigalpa onde finaliza Poesia Crítica. Em 1983 aparece o Auto do Frade, um ano antes fora designado cônsul-geral no Porto. Com a reforma, o poeta decide instalar-se no Rio de Janeiro, e em 1987 casa com a escritora Marly de Oliveira.

Na década de 90 começaram a agravar-se os problemas. Deixou de tomar aspirinas para a dor de cabeça que o afligiu por largos anos; um glaucoma o impede de ler e - ele que só apreciava a leitura e a pintura e odiava música -, resolve abandonar a poesia. Em 92 é galardoado como o Prémio Neustadt, nos Estados Unidos e no ano seguinte recebe o Prémio Camões. Fora contemplado, também, em 95, com o Prémio Rainha Sofia de poesia.

O poeta que escrevera sobre os deserdados sertanejos, as bailarinas andaluzas, os toureiros, o futebol, a aspirina e a própria poesia, segundo testemunho da segunda mulher, estava a rezar quando o enfarte o calou - rápido e fulminante teria dito Drummond. Tinha 79 anos. Como Guimarães Rosa, Heitor Villa-Lobos, Portinari ou Glauber Rocha, João Cabral de Melo Neto tocou na alma de um Brasil áspero, rude e verdadeiro.

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Dizia o poeta norte-americano Wallace Stevens na introdução de The Necessary Angel2 que “Uma das funções do poeta é descobrir através da sua intuição o que parece ser a poesia para ele num determinado momento. Há-de mostrar aquilo que sente na sua própria poesia através da poesia em si. Ele opera esta função na maioria das vezes sem estar consciente disso, de forma que a exposição das definições enquanto definem o que parece ser poesia para ele, são exposições de poesia e não exposições das definições de poesia”. A aparente complexidade desta afirmação ajudar-nos-á a perceber que João Cabral foi um poeta que expôs sempre a sua poesia sem querer defini-la. Todo grande poeta estabelece parâmetros estilísticos que delimitam o seu raio de acção numa literatura.

São poucos os poetas “inventores” no sentido poundiano da palavra. O autor capaz de criar uma constelação estilística a gravitar com o poder da expressividade, a fixar uma fala, a anexar e transformar uma realidade. Este género de poeta é raro, mas quando define a sua meta e funda a palavra, tudo o que existe à sua volta não permanece o mesmo. João Cabral foi um poeta desta linhagem, pelo menos para a poesia de língua portuguesa. Diz-se, hoje, que um poema é “pessoano”, “herbertiano”, “drummondiano” ou “cabralino” para caracterizar uma voz, uma poética. Isto acontece apenas quando a obra cria uma escala valorizada pela contemporaneidade.

A pregnância axial da poesia de João Cabral exibe um estilo aparentemente fácil, uma exiguidade verbal e a serialização do ritmo que parece não variar. Para Cabral a palavra deve ser usada com rigor. Este poeta desloca adjectivos com precisão, enriquecendo a musicalidade original da sua condição de nordestino. Partindo de um primeiro livro em que as imagens expressam uma subjectividade acentuada, seguiu uma via distinta. Opta aos poucos por expurgar da linguagem todo o excesso, sobrepondo um construtivismo formal. Cabral trabalha à superfície, mas a sua palavra é como a perfuratriz que incide no interior da rocha. Radicalmente solar na sua beligerância contra a discursividade lírica, é no entanto essencialmente nocturna na sua atitude reflexiva.

A elaborada sintaxe de João Cabral consegue mover-se na grade estilística dos versos de oito sílabas, actuando entre o erudito e o popular, entre a concisão e a narratividade. Como a figura seca e rija dos nordestinos, a sua poesia apresenta contornos que se polarizam em dois territórios, a página do dizer do sertão e a outra suposta página da interrogação poética. A linguagem é descarnada, sem perder a sua materialidade, “carne seca”, diria o poeta; o rio e o sertão, a escrita e o silêncio.

O miolo - ele diria o “caroço” - da sua poesia se situa a partir de O Engenheiro, continua em O Cão sem Plumas, Uma Faca só Lâmina, recupera-se em Dois Parlamentos e Serial, para desembocar com genialidade em Educação pela Pedra, A Escola das Facas e Poesia Crítica. Agrestes3 foi o seu último grande livro.

Utilizando uma metáfora, diria que cada literatura é como uma cordilheira, há declives intermináveis, abismos, montes aprazíveis e picos inexpugnáveis. Com quase toda a certeza, creio que João Cabral, no caso da literatura de língua portuguesa, chegou a um dos pontos mais elevados.

1 Texto escrito na altura da morte do poeta, e publicado no jornal Expresso.

2 The Necessary Angel, New York, Random,1951.

3 Agrestes, Rio de Janeiro, 1985, Nova Fronteira, reed. in A Educação pela Pedra e depois, Rio de Janeiro, N. F.1997.