O MINUCIOSO TRABALHO DA ABELHA
“Deixai que escreva pela noite dentro:
sou um pouco de dia anoitecido
mas sou convosco a treva florescendo”
Fazer uma curta biografia de um poeta como Carlos de Oliveira é deparar-se com poucos dados e a ausência de pormenores. Que nasceu em Belém do Pará, em 1921; que foi um nome central da literatura portuguesa a partir da década de 40; que esteve ligado ao neo-realismo; que se tornou um defensor de uma escrita rigorosíssima. Tudo isso aprende-se um pouco. Mas como foi a infância e a juventude deste poeta, de que forma isto contribuiu para gizar o seu carácter e, por essa via, delimitar algumas balizas da sua obra?
No início do século XX, Portugal assistiu a vagas de emigração para várias partes do mundo. Na região da Gândara, o Brasil foi o destino para muitas famílias e aventureiros. O avô do poeta fora para aquele país deixando para trás o filho, Américo de Oliveira. O rapaz fez os estudos apoiado pelo dinheiro que o pai enviava para cá, concluiu a 4ª classe, o liceu e entrou para a Universidade de Coimbra onde se formou
A crise política europeia acelerou-se até rebentar a I Guerra Mundial. O jovem médico é mobilizado para a frente de combate na Flandres, onde é gaseado e perde um pulmão. Volta para Portugal e estabelece-se próximo da actual Vila de Febres. As dificuldades são muitas e o dr. Américo de Oliveira aguarda instruções do pai para tentar a vida no Brasil. É aconselhado a partir junto com a mulher rumo a Belém do Pará,
A família retorna à Gândara onde o pai concorre a um lugar para médico municipal. Os primeiros tempos não foram fáceis. O jovem poeta começa os estudos primários
Quando chegam à capital, no início da década de 50, enfrentam o périplo da procura de casa e emprego. O poeta fora colocado numa escola técnica, embora o seu desejo fosse seguir a carreira diplomática. Publicara quatro livros de poemas e três romances cuja ressonância se alastrara pelo país. O eco do seu trabalho chegou, também, às instâncias do Estado Novo, não demorou a ter a as portas subtilmente encerradas. Um amigo fê-lo ver que, se tentasse a diplomacia, o seu nome seria logo reconhecido com as óbvias consequências, e chegou mesmo a procurar um contacto no Ministério dos Negócios Estrangeiros daquela época, mas recebeu um conselho similar. O poeta passou a exercer apenas funções efémeras em jornais e revistas ou colaborações irregulares, experimentou a tradução, além de organizar edições como a «Obra Poética» de Afonso Duarte ou «Contos Tradicionais Portugueses», recolha feita com José Gomes Ferreira. É a dedicação integral à literatura. Em 1950 é publicado «Terra de Harmonia» - que incluía o livro Descida aos Infernos, e, em 53, outro marco da sua obra romanesca, Uma Abelha na Chuva.
Os encontros nos cafés lisboetas são um percurso diário; locais como o Tony dos Bifes, o Monte Carlo e o Monte Branco, faziam parte do seu roteiro onde trava amizade com Mário Dionísio, Augusto Abelaira, entre muitos outros. Um testemunho desta época, em que deambulavam várias figuras simbólicas do panteão literário português pelos bares e cafés, foi escrito por Maria Velho da Costa numa homenagem aos “três magos avançando numa ábside”, imagem que guardou dos poetas Gomes Ferreira, Herberto Hélder e Carlos de Oliveira entrando no café Monte Carlo. A escritora delineia o autor de Micropaisagem desta forma:”O terceiro homem vem todo por dentro. Tem a cara fechada e o olhar é esquivo, no chão as mais das vezes, como se caminhasse por hábito, por indícios, não precisasse, e até preferisse, não ver. É mais vagaroso que os outros e não há nele levitância ou emanação, excepto dirigida para dentro, alimentadora da compactez da passagem, pujança inflectida. Traz um livro na mão que Ramos num relance, mais que ler, decifra. São as obras completas de Mallarmé, da Plêiade. Não é um homem belo, embora talvez o tenha sido de rapaz, mas reservou-se. A maneira como baixa a cabeça a Ramos, um pouco lateralmente e sem sorriso, e mais com crispação de quem acena de dentro de um infindável desgosto ou temor, revelam porém hábitos de um grande apuro de elegância, esquecidos como uma educação que fica.”3. O tráfego de ideias pairava entre as mesas dos cafés, e o poeta era um visitante assíduo de muitos onde chegava sempre a seguir ao almoço.
No período do 25 de Abril passou a tarde a ouvir as notícias. A partir daí foi o corrupio imparável entre almoços, comícios e jantares, até o desencanto posterior. O poeta ainda chegou a ser sondado para ocupar um lugar no governo, mas recusou o convite. A sua obra entrou na fase final. Publica os dois volumes de Trabalho Poético em 1976, e em 1978 Finisterra. O último livro foi «Pastoral», de 1977, onde encontramos uma advertência, porventura, para entendermos a sua poética:
“Rodar a chave do poema
e fecharmo-nos no seu fulgor”
Entre a vigília e a pesquisa, o poeta mantinha um rigor obsessivo. Trabalhava lenta e silenciosamente5, a corrigir, a emendar, a recusar o fácil, a linguagem chã, procurando a palavra certa, a imagem exacta. Num trabalho que seria possível fazer um paralelo com a produção da cal - tão comum na região gandaresa -: queimando as pedras em altas temperaturas para transformá-las em pó, Carlos de Oliveira deixou uma das obras mais rigorosas da literatura de língua portuguesa.
A 1 de Julho de 1981, o poeta calara-se para sempre mas a sua obra continua a pulsar no nos no seu fulgor”4. Entre a vigília e revérbero instantâneo de um verso, de uma imagem, neste trabalho nocturno que procurou a essencialidade e através de palavras como cal, adobo, duna, pinhais, Gândara, ressuscita a cada nova leitura.
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Ouvir um poema é uma experiência distinta da leitura propriamente dita. Dizer um poema é o momento da liberdade formal, a palavra ascende das grades da página para ser impressa noutro limite. O som toma conta dos sentidos, uma fissura se abre entre a visão e a audição, e somos invadidos por uma nova apreensão das palavras; as capacidades imagéticas são superadas pela transparência melódica. O poema, dito pelo próprio autor ou por um intérprete, estabelece correspondências determinantes no que diz respeito ao som, o ritmo, a intensidade. Ganha outra energia, sem perder, é claro, o poder original quando lido no silêncio da solidão.
A grande maioria dos poetas não diz os seus poemas, e nem toda poesia se adapta à declamação. Muitos autores exercitaram a verve interpretativa. Os poetas futuristas russos foram exímios, Maiakovsky chegou a reunir um público considerável só para ouvi-lo. W. H. Auden gravou vários poemas ditos por si mesmo, mas o trabalho “An Evening of Elizabethan Verse” é extraordinário. A voz grave, maciça de Ezra Pound, com um acento quase germânico, deixa qualquer ouvinte sobressaltado. A sua voz amplia a marca frenética da sua poesia e poemas como “Sextina: Altaforte”, “Piere Vidal Velho” ou alguns “Cantos” ditos por ele são inesquecíveis. Dylan Thomas é, talvez, o exemplo genuíno do bardo completo, quem tiver a oportunidade de ouvir a sua voz não esquecerá a experiência. O ritmo severo e quase “cantado”, projecta-nos na espiral da sua energia vocabular. A leitura do poema “Death Shall Have no Dominion” ou o lirismo com que diz “Winter’s Tale” são momentos únicos.
Infelizmente o autor de «Sobre o Lado Esquerdo» não nos deixou o registo da sua voz. A poesia de Carlos de Oliveira funciona na perfeição para quem resolver dizer os seus poemas. Gastão Cruz é o responsável pela selecção dos poemas do autor. A sua escolha parece ter visado aqueles cujo vigor e funcionalidade tornam a interpretação maleável na voz de João Grosso.
A interpretação expõe a limpidez da vibração, da sonoridade residual das palavras, marcando o tempo e o espaço de cada texto. Carlos de Oliveira era um metrónomo rigoroso, há uma certa cadência que se evidencia, como no poema “Descida aos Infernos”, em que a sucessão de vocábulos onde ressoam a vogal u, parece absorver a turbulência oculta no texto:
“Me arrastam tumultuárias
até ao núcleo do tumulto,
lá onde pulsa à beira do seu túmulo
o coração da terra para sempre insepulto”.7
O poeta faz uso desta mecânica vocabular explorada até uma fronteira decisiva; o corpo e o ritmo textual estilhaçam-se para sustentar a harmonia. É a reverberação de uma poética ao encontro do momento inaugural:
“Esta coluna
de sílabas mais firmes
esta chama
no vértice das dunas
fulgurando
apenas um momento,
este equilíbrio
tão perto da beleza,
este poema
anterior
ao vento”8
A experiência é levada ao extremo até um dos últimos livros, «Micropaisagem». O sentido deste movimento é a inscrição da(s) palavra(s) no espaço e no tempo, como se estivesse a cauterizá-la(s) num limbo impenetrável.
A incidência constante do gerúndio é outro aspecto que atravessa a sua poesia, mas tal recurso é usado de acordo com a rigidez sincrónica, como podemos ver nos poemas “Descida aos Infernos” ou “Xácara das Bruxas Dançando”:
“E o tempo murchando
a luz de idos loiros.
Ama, até quando
Estaremos chorando
os castelos moiros?
Lá vão naus da Índia,
lá se vão tesoiros.
E as bruxas dançando
e os ventos secando
as laranjas de oiro.”9
João Grosso perfila-se ao lado de artistas como Laura Soveral e Maria Barroso que também interpretaram versos do poeta. Três momentos a reter do trabalho do “diseur”: “Descida aos Infernos”, “Instante” e “Soneto Fiel”. São a homenagem cristalina a um dos mais altos poetas da língua portuguesa.
1 Texto baseado numa reportagem sobre o poeta Carlos de Oliveira
2 Cito a edição Obras de Carlos Oliveira, Lisboa, Editorial Caminho, 1992.
3 Lucialima, Lisboa, Publicações D.Quixote, 1983, (4ª ed., 1997), p.242
4 Op. Cit., p.392
5 Ver sobre este assunto Carlos de Oliveira e a Referência em Poesia de Rosa Maria Martelo, Porto, Campo das Letras, 1998.
6 Poesias de Carlos de Oliveira, poemas ditos por João Grosso, livro e cd, selecção de Gastão Cruz, Presença/Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 1995.
7 Op. Cit., p. 39
8 Idem, p.61
9 Ibidem, p.21