segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011




(Uma pausa para uma homenagem)
No final dos anos 70, início dos 80, conheci um dos maiores poetas brasileiros (infelizmente, o reconhecimento ainda não se deu), Max Martins. Através dele, travei amizade com o filósofo, ensaísta e crítico paraense, Benedito Nunes; e por sua via, tornei-me amigo do romancista Haroldo Maranhão, quando vivi no Rio de Janeiro.
Ambos pertenceram a uma geração intelectual surgida no Pará, responsável por abrir as portas para a modernidade literária. Podemos ainda agregar a esta geração, a figura do poeta Mário Faustino, embora não fosse paraense de nascença. Isso tudo indica que o grupo foi imprescindível para a história intelectual do Norte do Brasil.
Benedito Nunes começou a granjear o reconhecimento pela sua obra, tal como Mário Faustino ao mudar-se para o Rio de Janeiro, relativamente cedo. Figuras como Clarice Lispector ou o filósofo francês Michel Foucault ( a foto acima atesta a passagem do francês pela ilha de Mosqueiro, onde foi várias vezes) foram conquistadas pela sagacidade deste paraense baixinho, mas cujo vigor intelectual era enorme.
Os textos publicados até hoje neste espaço devem muito ao Benedito Nunes. Sem ele, e a obra que deixou, jamais teria escrito uma linha sequer. De certa maneira, procuraram, em vão, estabelecer um diálogo distante com aquele que soube interpretar o fenômeno poético como ninguém. Sem a leitura da obra do Benedito, jamais teria a coragem de debruçar-me sobre um determinado autor. Foi o meu mestre tácito, o exemplo tenaz do que se deve procurar fazer quando se escreve sobre poesia.
Assim como as obras do Max e do Haroldo são exemplos, até hoje, da genuína criação literária.
A única forma que encontro para despedir-me do Bené, é publicando um dos últimos textos que escrevi. Neste caso, sobre um poeta grego pouco conhecido no Brasil, Odysseas Elytis.
Um gesto simples, mas para mim profundíssimo, para demonstrar minha dívida, admiração, gratidão e amizade por esse heleno-paraense que jamais esquecerei.
Adeus, Bené.
Jorge Henrique Bastos
GRÉCIA: ENTRE O CAOS E A BELEZA1
É curioso constatar - já que somos herdeiros da democracia nascida em Atenas - que a Grécia tenha sido fustigada ao longo da sua história contemporânea por inúmeras convulsões políticas, guerras civis e ditaduras como a do 'regime dos coronéis'. Assolados por crises seculares, os gregos sofreram desaires trágicos. Assistimos ainda hoje a sequelas desse passado, como a questão de Chipre.
O verso de T. S. Eliot - "Abril é o mais cruel dos meses" - adapta-se com perfeição a este caso. para os gregos, abril é o mês em que recordam duas datas do seu calendário -a Páscoa ortodoxa e o estabelecimento do 'regime dos coronéis'. O poeta Odysseas Elytis, prémio Nobel de 1979, foi testemunha de muitos acontecimentos históricos do seu país, reflectindo sobre tais factos, em especial, no longo poema Louvada Seja (Áxion Esti).
Oriundo da ilha de Creta, onde nasceu em 1911, Elytis estreou-se na revista Néa Grámmata, publicada em 1935, ano em que o rei Jorge II voltou a assumir o trono após um exílio de vários anos. A situação política começava a complicar-se. Chefes de governo haviam falecido e fora criado o partico comunista grego. Em 1936, o general Metaksás chefia um golpe de estado, proclama a lei marcial, proíbe qualquer oposição e impõe uma das primieras ditaduras da Grécia contemporânea. O governo ficou conhecido pela violência, decretou a censura e retirou a liberdade de expressão, alinhando com os regimes nazis e fascistas. Um exemplo da atitude característica de Metaksás foi a decisão de apreender e queimar o livro do poeta Giannis Ritsos - Epitáfio - diante da porta de Adriano, em Atenas.
Elytis entrou para o exército, em 1937, mas não deixou de escrever, e traduziu autores como Piere Jean Jouve e Lautréamont, em 1939, na véspera da Segunda Guerra mundial. As tropas italianas vindas da Albânia invadem a Grécia. O conflito deflagrou devido à recusa do general Metáksás em aceitar o ultimato de Mussolini para que permitisse a passagem do exército italiano pelo território grego. A 13 de dezembro, Elytis avança para a frente de combate como subtenente da 4ª companhia do 2º batalhão do regimento de infantaria. A experiência na frente albanesa resultará no livro Canto Heróico e Fúnebre pelo Subtenente morto na Albânia.
Em 1941, o general morre vítima de leucemia, tendo início um período crítico para Grécia. os alemães invadem o país, o rei Jorge II foge para Creta, e depois para Londres. Milhares de gregos morrem de fome. Criaram-se então diversos movimentos de resistência - FNL ( Frente Nacional de Libertação), ENPL ( Exército Nacional Popular de Libertação), ENDG (Exército Nacional Democrático Grego - mas resolveram colaborar em conjunto contra o invasor, sob uma condição, após a expulsão dos alemães far-se-ia um referendo para formar um novo governo e reconstruir o país.
Quando a perspectiva de libertação era iminente, começou o digladiar entre os movimentos para ver quem controlava o poder. Forma-se então uma coligação comandada por Papandreou que solicita ao FNL que abandone as armas. É o bastante para desencadear a guerra civil por todo o país.
Em 1944 entram em cena os ingleses, procurando negociar o fim dos conflitos entre os movimentos. A solução é desastrosa, desentendem-se com os gregos, os partidos lutam entre si e as manifestações alastram-se pelas ruas contra a presença inglesa. É o caos absoluto. Neste mesmo ano, o rei exilado nomeia regente o arcebispo Damáskinos. A trégua é instituída, em 1945, com resoluções que propunham reformas políticas, amnistia, e um referendo. Em maio, os alemães saem de um país em ruínas.
Na Conferência de Paz, em Paris (1946), a Grécia recebeu da Itália as ilhas do Dodecaneso e uma indemnização da Bulgária. Mas o clima político mantém-se instável. Tsaldaris assume o poder em maio e focos de conflito recomeçam em várias partes do país. O rei Jorge II chega a Atenas em setembro. Dois anos depois a guerra agrava-se com a tentativa de formação de um governo nas montanhas a norte da Grécia. É decretada a lei marcial, em 1948.
Elytis viaja para a Suíça e França onde trava amizade com Pierre Reverdy, André Breton, Eluard, René Char. Faz um périplo por países como Espanha, Inglaterra, Itália, regressando à Grécia, em 1951, já sob o governo do general Papago. Segundo muitos críticos, é a época em que inicia a escrita de Louvada Seja.
Konstantino Karamanlís sucede a Papago e fica no poder até 1963. Entre as decisões que tomou, alterou o sistema eleitoral e foi responsável por dossiês complexos como a "questão de Chipre'.
Na década de 60, Elytis desempenhou cargos de direção - no Teatro de Arte e no Ballet Grego. A Grécia vive alguma acalmia, até que o governo de Karanmalís é acusado de corrupção. Enquanto a poesia grega era aclamada, em 1963, com o primeiro Nobel de Literatura concedido a Giorgos Seféris, Karamanlís demitia-se de suas funções. Em 1964, o parlamento é dissolvido e o destino da Grécia ficou à mercê de Papandreou. O músico Míkis Theodorákis apresentou nesta altura a sua versão para orquestra, coro e solista, baseada no poema Louvada Seja que se tornará referência nacional.
Predestinada a enfrentar instabilidades sucessivas, a Grécia vê-se mais uma vez envolvida em escândalos. Papandreou demitiu-se ao mesmo tempo que manifestações antimonárquicas se multiplicavam pelo país. Elytis, por seu lado, é traduzido noutros países e a sua obra ganha notoriedade mundial enquanto entra definitivamente na senda do equilíbrio estilístico e da maturidade intelectual e poética.
A 21 de abril de 1967, o general Patakos lidera outro golpe - é a imposição do 'regime dos coronéis' . Papadopoulos dirige a junta militar, apresenta um projecto para uma nova constituição e a partir daí tem uma conduta autoritária, perseguindo todos os que se opunham às suas ordens. Vemos um testemunho destes factos no filme Z de Costa Gavras.
Em 1970, os militares afrouxam um pouco, devolvendo alguns direitos civis, e resolvem abolir a monarquia, em 1973. Estala outro golpe militar, que expulsa desta vez o arcebispo Makários da presidência de Chipre. A invasão turca da ilha faz tremer os coronéis.
O outono de 1973 colou-se para sempre à memória dos gregos. Com o assassinato do deputado Gregoris Lambakis organizaram-se inúmeros protestos pelo país. Em novembro, estudantes da Escola Politécnica de Atenas foram violentamente reprimidos, dando origem a mais de uma dezena de mortos e centenas de feridos. Era o começo da queda do regime dos coronéis, cujo fim se deu em julho de 1974.
Cinco anos depois, em outubro de 1979, a Academia sueca galardoou Odysseas Elytis, que arrebatava assim o segundo Nobel para Grécia. O comunicado divulgado distinguia o poeta que soube "combinar a tradição com uma perspectiva moderna da luta do homem pela liberdade e pela criação".
Durante toda a ditadura, poemas de Áxion Esti eram cantados pelos gregos, como sinal de protesto e resistência.
O poeta morreu em Atenas, a 18 de março de 1996.
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Ao longo do século XX, a literatura grega gerou titãs como Konstantino Kaváfis, Nikos Kazantzákis e Giorgos Seféris. Inserido na geração de 30, que reuniu autores como Andreas Embirikos, Giannis Ritsos, Seféris, Nikos Kavadías, Elytis fez a síntese da tradição, realçando um helenismo intensamente estético, munindo-se da herança propagada pelos surrealistas franceses.
A vaga surrealista chega à Grécia com anos de atraso - mais especificamente em 1931 - quando foram publicados artigos na revista Logos que despertaram pouco interesse. Em 1935, Embiríkos pronuncia uma conferência e organiza a primeira exposição surealista na Grécia, que provocam uma profunda impressão no jovem Elytis. Neste ano, aproxima-se dos editores da revista Néa Grámmata e publica vários poemas. O primeiro livro, Orientações, aparece em 1940, seguido de O Primeiro Sol, em 1943.
Louvada Seja é editado em 1959, após um longo silêncio que serviu ao poeta para amadurecer e reflectir, enquanto trocava experiências com outros autores e traduzia obras de Jean Jouve, Lorca, Eluard.
Estruturado com rigor, o poema está dividido em três partes - "Génesis", A Paixão" e "Glória". Elytis parece ordenar uma catarse extraordinária após anos de guerra e conflitos. É a impotência do poeta perante a morte e o terror que o faz transcender a realidade através da linguagem.
O próprio título nos diz muito acerca do poema, captando elementos da tradição ortodoxa grega que se cantam na noite de Sexta-feira Santa, a par dos hinos eclesiásticos. A primeira parte - "Génesis" - ampara-se na ressonância do sentido da criação do mundo, do conhecimento e da luta entre o poeta e o verbo:
"Debruçado sobre os papéis e os livros sem fundo
com um fino cordel descendo
noites e noites
procurei o branco até à tensão extrema
do negro A esperança até às lágrimas
a alegria até aos confins do desespero"2
Na segunda parte, o poeta metaforiza o calvário de Cristo, intercalando-o com o sofrimento do povo grego entrincheirado entre a ocupação alemã, a guerra civil e a guerra com a Albânia. Elytis consegue um efeito notável ao usar diversas formas poéticas inspiradas tanto em canções bizantinas e de cunho popular como nos salmos de Davi:
"Vieram
vestidos de 'amigos'
incontáveis vezes os meus inimigos,
pisando o chão antiquíssimo.
E o chão nunca se deu com os seus calcanhares.
Trouxeram
o Sábio, o Colonizador e o Geómetra,
livros de letras e números,
toda a submissão e toda a potência,
sujeitando a luz antiquíssima"3
O poeta, imbuído de consciência estilística, faz convergir toda uma bateria de referências;
"Língua deram-me grega,
a casa pobre nas praias de Homero.
(...)
verbos vergastados pelo vento,
verdes correntes através do azul,
quando vi acender-se nas minhas entranhas,
esponjas, medusas,
com as primeiras palavras das Sereias".4
Caiada por uma luz solar vertiginosa, atravessada por uma imagética mediterrânica, detentora de uma metafísica expressiva, a poesia de Odysseas Elytis está primorosamente apresentada, em Portugal, numa tradução irrepreensível assinada por Manuel Resende.
1 Louvada Seja, trad. Manuel Resende, Lx., Assírio & Alvim, 2004; publicado no jornal Expresso.
2 Op. cit., pg. 20
3 idem, p. 51
4 idem, p. 30

3 comentários:

Angelita Francis disse...

Jorge, fiquei emocionada com tudo: com as plavras, o teu sentimento pelo pequeno grande homem que foi o tio Bené. O que me consola é o legado e as amizades que ele construiu ao longo da vida, o que acho era tão importante pra ele que o resultado eu vi hoje, a dor indescritível de quem perde um amigo. Perdi como sobrinha uma inspiração de tio e sinto tanto, mas não consigo imaginar o que vocês, amigos sentem em relação a isso, por isso agradeço por você ter dividido com a gente essa sua experiência. Bjs

Pandolfo disse...

Caro Jorge. Qualquer comentário elogioso que se faça sobre Mestre Benedito - já não fora ele um Bendito - será pouco para o que representou nosso Bené para a Amazônia e mesmo para o Brasil, mas, no entanto, é preciso que se o faça, que se deixe à mostra o quanto ele foi grande, apesar da pequena estatura e franzino corpo. O texto sobre a Grécia está "supimpa", como a gosto dos nossos coirmãos lusos. Cordial abraço

Sai Si Si disse...

olá, Jorge
Aprendo sempre contigo. Bjsssssss