ANDREA ZANZOTTO
Volto aqui só para uma simples homenagem.
Ele tinha algo de clownesco, sua poesia é uma panaceia de vozes, tons e ritmos.
Daí sua amizade com Fellini, com quem colaborou em inúmeras obras.
Tenho a convicção que o cinema de Fellini não seria o que foi sem a mãozinha de Zanzotto.
Era o maior poeta europeu vivo. Só resta agora Bonnefoy e Hill.
Eis alguns dos seus poemas que traduzi há 6 ou 7 anos:
ÉCLOGA II
- a vida silenciosa -
a M.
I
Sentemos juntos agora,
entre colinas, na selva doméstica.
Retiro ternamente as ligaduras da tua fronte,
sóis, cardos e pastos vivos,
afasto-os de ti, minha amiga. Oh ervas que crescem
na escuridão duradoura, sobre
qui omnia vincit.
E os ventos se extinguem e renovam
com o dobrar das horas, das águas
e das almas.
Mas nós sentamos atentos
sempre com a silenciosa e fiel defesa.
Terna e humilde será a minha voz,
fulgurante na garganta
mas não vil,
- que a sombra jamais deveria tocar -
radiante será tua voz,
de esponsais dominicais.
Nunca seremos poderosos nem divinos,
aproximaremos as frontes
para viver,
folhas, nuvens, neve.
Virá outro e entenderá: a força
de céus fecundos
e atmosferas
reintegradoras, paradoxos ébrios,
movimentará outra história
e o destino. As mães vigiam para nós, afetuosamente,
as cozinhas, o fogo brando, recolhem
a lenha escassa nos pátios. Um leite miserável
será o nosso alimento até que
estúpidos, amorosos e inúteis
nos roubem a velhice e assim
que nascer no campo a flor
há de ensaiar o ritmo dissoluto do coração,
a dor e o êxtase irreversível.
II
Conhecerás o meu riso,
a súplica fixa
como uma ferida nos milênios
e com a alba em cada manhã.
Hei de conhecer a lenta germinação:
como hás de abrir e saciar
os brandos acontecimentos.
Drogas inócuas, tormentas de março;
hortos de lírios e cera, sinecuras
para a mente e as mãos débeis de alergia;
leituras sobre a poeira dos verões,
leituras sob a chuva, entre as infinitas espinhas da chuva.
Às vezes, Urania, a verdade
é como um fruto armado que se abrirá:
o céu máximo,
voos que a noite
do solstício reanima,
gema de remotíssimo
hidrogênio, ódio e amor,
a fadiga ardente:
abandonada aqui, na água do planeta,
com perfis de libélulas e lírios verdes.
Talvez erga para ti os olhos,
a boca onde a espera
alterou o dizer, o existir.
E amanhã, na terra,
tornar-se-ão ardores estelares
os vestígios derradeiros,
as esperanças convulsas e efêmeras.
Teremos distâncias inversas,
espelhos hão de oferecer imagens roubadas,
flores fugindo dos muros para te amar.
Seremos apenas um afã, um só esquecimento.
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A PERFEIÇÃO DA NEVE
Quanta perfeição, quanta,
quanta totalidade. Incho pungindo.
E depois abstrações, astrificações, formulação de astros,
sideração, através de sidera et coelos
siderações assimilações -
procederia no aperfeiçoamento
para além do grande deslumbramento, da plenitude e do vazio,
procuraria procedimentos
ressaltando, evitando
dúvidas tenebrosas; diria, saberei.
Mas como nos sustém, quanto é a fertilidade nívea
quanto custa: pela costa abaixo da manhã
pela costa acima da luz plurifonte.
Meti-me no meio do movimento-desfalecimento radial
o tremor primevo da ascensão, da compreensão,
parte em ordem, desafia: eis tudo.
A tua consolação, insolação e a minha, fruto
deste inverno aliado, ensaiado
sobre os vértices vítreos de sempre, sobre as margens nevadas
do nunca-nunca-não-deixo-ir,
e a estrela que esplende no seu cacho
e a castanha colhida no frio
e-tudo-todo-eros, tudo-lib. liberdade no laço,
está no abraço: está
no convite, no programa, no assunto.
Um sorriso, verdade? E a vi(da) (id-vid)
sobre a qual não se pode criar hipóteses,
sobre o limiar faz-se (acariciar)
Evoé ao longo dos gelos e do cultivo das cores
e os pacientes trabalhos de ourivesaria
Pronto. Falo com quem? Reconectar.
Estou pronto, em fase imortal,
para um sketch-ideia da neve, para o seu esplendor.
Pronto.
Na perfeição.
«É tudo. Podeis seguir»
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(soneto da soma no bosque e acupuntura)
O esfolar sagaz do tigre, ideograma
onde a parca substância se derrama,
o yin e o yang tremem na trama,
à procura do alvo onde a vida é chama
enquanto a agulha busca drama a drama
- espinha, unha, punhal da mão que ama -
meridianas linhas em mim enrama
o yin e o yang rompendo todo diafragma.
Sinto-me assim, uma torpe soma
sob essa mão, a fera extrema,
que uma prole de Cupidos em mim se imprima;
mas não é por ti que se doma
a quimera, o sofisma, o entimema,
e a delirante é só mais uma.
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PRIMEIRA PESSOA
- Eu - com tremores contínuos, - eu - disperso
e presente: nunca chega
a tua hora
não soa o céu do teu verdadeiro nascimento.
Mas nasces em lentos
bosques, nos abismos luminosos,
nos sóis abertos como ventosas vivas,
humilhado lambes sempre
fendes indômito
o ser macilento
jorrado pela combustão.
Sobre o vidro
eternamente escuro
foge a páscoa dos cabelos revoltos
a primavera atrasa-se e desvanece.
O ofegar premente e suspenso
agora e para sempre,
reencontrar-me insaciável e apagado.
Agora e eternamente? Mas se com o bem
à sombra só me tocas
com a ideia, oh vórtice ao qual correm
tentativas incertas, o débil
pulso do coração. E para além do vidro,
a páscoa, maio e a luz turbulenta se fundem
no verde infinito das chuvas.
As ruas e a lama
tremem como o motor, o orgasmo
se multiplica, eu cresço, declino.
Viverei de ti até que distraído exceda
o teu nume sobre mim,
já extinto significado,
até que noutros terrores volte a germinar
outras frustrações
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(Para Ghène)
Impossível não aceder à doce ruína
da hospedaria imóvel na esquina,
regressas das ruas sob geadas outonais,
velhices graves, beneplácitas,
imóvel como uma estampa encantada
no diariozinho dos gnomos
no diariozinho dos heróis
no diariozinho dos sumo-sons
Nenhuma temporalidade nos muros
que no entanto
guardam o vestígio do cômodo, profundo sei,
e adaptam e seguem destroçados
ao encontro de um intenso, terníssimo porquê.
Vislumbram-se painéis e paredes esburacados
vigas que amparam e telhas que fazem de teto
de modo que o imperfeito
do conjunto se desloca acentuado,
exaltado para além de todo hábito,
de toda segurança -
levíssimo pano de cena, portal do inferno
ou porta limbo-estampa
calma e certeza no infinito rachar
das vigas que suportam
entre si, penosamente, os buracos
provocados por mim ou os ladrilhos arrancados
um a um se confiam à argamassa
todavia dissolvida, síntese de toda coloração,
de todo perdão, de todo consolo
Inspecionam as ranhuras negras,
às vezes, alguém passa adiante,
mas não há mistério que perdure
que com golpes e argamassa crepitantes não se purifique
por olhos que divagam
ou atirados no regato
ou pior do que cada pássaro nidificador ali dentro
todavia - oh amada ruína -
hospedado por ti com as panóplias
das escritas invitatórias - sempre as mesmas -
VINHO E CERVEJA quase ameaçadoramente
ou sutilissimamente
dementemente asseverando.
Quem ousará contradizer?
Quem não se deterá sobre esta orla?
Quem não provará esta gema
de ordens e espaços
aparentemente impugnados
Não estarão aqui, talvez, todas as datas?
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NÃO GOSTAS DE VER CHOVER MOLHADO
Não gostas de ver chover no molhado
(agora que chove), nem que levem corujas
para Atenas, ou madeira e sarças até o bosque.
Por isso resulta tão difícil e raro,
Eusébio, enviar versos à tua casa -
a não ser um destes sonetos quebrados como lascas de lenha,
que era costume esparramar à luz da vela,
sob o manto no frio dos grandes tempos passados.
Trato, pois, de intrometer-me
e aturdir mais do que o costume;
seria melhor calar profundamente, silenciar e ler-te.
Mas por aquele disparo do fuzil ou das explosões de minas
no vazio raro dos campos e dos mundos,
e também por aquele estrondo dos petardos
lançados no céu como fogos de artifício,
nos remoinhos ventosos dentro das nuvens gigantes, -
que sempre brotam da tua poesia, -
que sempre me despertam
e que marcaram o meu caminho há tantos anos
como no meio de um banco de neblina, -
é necessário, pois, te saudar.
Não sei se andou direito ou desviado,
se merecem compreensão tais linhas
que te envio de litorais e abismos longínquos.
Mas estou certo que hás de ver quão límpido
é o augúrio bom que eu - com muitos outros - faço a ti
pelos teus oitenta desta humana vida
e talvez mil de nos abalar - o que não gostas - e encantar
com a escuridão e a luz,
de fechar-te como um ouriço e a tua manifestação:
galhos e raízes da mesma floresta
onde o fácil e o difícil, no seu abraço comum,
são sempre os mesmos e o seu oposto. b
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