quinta-feira, 25 de novembro de 2010






A BELEZA QUE RESTA

Se observarmos o percurso da poesia portuguesa contemporânea, notar-se-á um facto sintomático, ou seja, a presença feminina compareceu de forma recatada, revelando obras que aos poucos conseguiram conquistar um espaço próprio. Neste sentido, a poesia de Florbela Espanca determina o aspecto precursor, adquirindo contornos específicos. A partir da segunda metade do século XX, a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen concentrou a atenção ao desenvolver uma poética surgida nas páginas dos “Cadernos de Poesia”, e em outras revistas que animaram o panorama literário a partir dos anos 40. A sua obra definiu, de certa forma, os caminhos propagados pela lírica portuguesa de expressão feminina (não pretendo elaborar uma distinção de géneros tão ao gosto dos cânones politicamente correctos, mas efectivar a perquirição sobre três casos contíguos).

Os primeiros sinais que indicam a busca de uma expressividade moderna sobressaem na obra de Sophia. Atenta ao fenómeno poético, desenvolveu uma estilística inebriada pelos reflexos da tradição clássica, sem perder de vista a consistência da realidade como suporte da sua poética. Duas décadas mais tarde, desponta uma voz a configurar um tratamento inesperado da linguagem e a experimentação renovadora tratava-se de Luiza Neto Jorge que começara a publicar em 1960. Deixou uma obra que totaliza sete livros de poesia2, inúmeras traduções lapidares, escreveu ainda para teatro e cinema. A sua poesia atingiu um patamar singularíssimo onde o discurso poético é trabalhado segundo o aprofundamento metafórico.

Desde a publicação do seu primeiro livro As Cidades Indefesas, Fátima Maldonado mostrara um tom que transitava entre a intensa percepção da feminilidade e um acentuado sentido do mundo e do quotidiano. Agora, a sua visão crítica do mundo parece radicar nos vislumbres da realidade condicionados por uma pulsão interna implacável. A autora tem vindo a operar uma engrenagem poética em que a detonação discursiva se equilibra num ritmo austero, impregnando-o com a utilização eficaz de um léxico apurado. A sua poesia transpôs a marca erótica inicial para cultivar um universo violento e melancólico, vislumbrando os despojos quotidianos, imbuída de uma consciência céptica:

“Desce-se a rua

na esperança de esquecer

o uivo da matilha,

a beleza que resta

acorre-nos às feridas

unguentos depõe

nas zonas infectadas”3

Apesar de manter o ritmo característico, Fátima Maldonado traz agora à superfície a erupção violenta onde fervilham a paixão e o ódio, a beleza e o horror, o prazer e a repugnância. Trata-se de uma cadeia de conteúdos cujo fim é “cadaverizar” a realidade. O acúmulo de imagens de um mundo em declínio traduzem o esgotamento que o poeta alegoriza, daí a captação das imagens em torno da sujidade urbana e humana como o suor, o muco, as secreções, é a deriva residual:

“Nesta cidade onde vamos soterrados

horrendos cheiros atacam

dos depósitos,

amêijoas decompostas reluzem

em sucos opalinos,

compõem ritmos

onde sucubem fórmulas

nos restos da maresia”4

Em vez de apenas descrever a gordura dos corpos em ardor erótico, Fátima Maldonado deforma-os, exibindo a sua decadência. Numa acepção possível, diria que esta poesia se investe de um maneirismo imagético da decomposição em que a assunção da náusea é o principal instrumento perceptivo:

“Sente-se o bafo, o muco, o ranho

o rasto que nos deixa

lesmático o coturno

cumprindo cada pedra

até subir à ara

do sórdido jornal”5

Estamos diante daquela “aversão pelo real”, de raiz baudelairiana só que Fátima Maldonado anatematiza o real com um alto grau de radicalidade.

Embora as poéticas destas três autoras sejam distintas entre si, coexistem variados pontos de contacto que interligam-se nos exercícios processuais de cada uma, e implantam paralelismos temáticos específicos. Um contraste entre os temas operados ajudar-nos-á a aclarar as fronteiras.

Enquanto Sophia de Mello Breyner enuncia a sua distanciação das coisas “Eu me perdi na sordidez do mundo/ Eu me salvei na limpidez terrena” , as outras duas autoras aceitam esta sordidez. Sophia quer justapor a beleza do mundo, Luiza ataca-o pela ironia e Fátima acicata-o. A sensibilidade de Sophia é serena, a de Luiza é enleadora e a de Fátima nervosa. Sophia evoca o amor, as outras a paixão e o desejo, só que em Fátima a relação paixão/desejo é sempre dolorosa:

“Ela degolou tudo,

honrei-lhe o corpo

cravando tão fundo quanto pude

os pregos da paixão,

entrelacei espinhos de amor

numa coroa real”6

“Un si funeste désir”, diz um título de Pierre Klossowski, que poderia nomear esta poesia. Ao helenismo estóico de Sophia, a asserção dionisíaca de Luiza, as experiências lexicais de Fátima. A beleza para Sophia é clássica e evocatória, para Luiza ironicamente erótica, para Fátima reveste-se de uma malignidade interior. Sophia mascara a sua eroticidade, as outras exibem-na. Sophia é transparente, Luiza é matericamente surreal e Fátima densa. O amor é sempre resignado e cru em Luiza e Fátima, enredado num turbilhão de referências e renúncias; em Sophia, pelo contrário, é platónico.

A poética de Sophia é consagratória, a das outras inquiridoras e mergulhadas no cepticismo, daí o aspecto fragmentário de Luiza, as ambiências “sujas” de Fátima. Sophia reclama um classicismo que se antepõe ao testemunho das ruínas dos corpos, do mundo e da linguagem de Luiza e Fátima. Sophia celebra a imanência da palavra. Luiza a experimenta, e Fátima entrega-se à velocidade do tempo e à dissolução da sua linguagem.

A celebração das musas, do corpo, do sexo, e da linguagem são características latentes no conjunto poético destas três autoras. No caso mais actual Fátima Maldonado , é a manifestação ousada e o mergulho corajoso nos subterrâneos do imaginário feminino, dando seguimento a um percurso galvanizado sob o poder da lucidez e do deslumbramento estilístico.

1-Cadeias de Transmissão, Lisboa, Frenesi, 1999, publicado na revista LER.

2- in Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.

3- op. Cit., p. 221

4- idem, p. 191

5- ibidem, p. 191

6- ibidem, p. 184


quarta-feira, 10 de novembro de 2010



A GRAMÁTICA CRUEL DE HERBERTO HELDER

Em Portugal, a exemplo das gerações surgidas na época das revistas “Orpheu” e “Portugal Futurista”, a década de 60 transformou-se no núcleo disseminador da modernidade. Tal década foi particularmente movimentada, tanto a nível político como cultural. Os fragores do neo-realismo continuavam a provocar ciladas e os herdeiros do surrealismo aprimoravam as vozes. O grupo conhecido como “Poesia 61” despontara, também, neste período, reinvindicava a sua independência e opunha-se ao caudal discursivo dos surrealistas.

Os poetas da década de 70 enveredaram por outros caminhos e reclamavam outras influências. Ambas gerações devem muito às antecessoras. A contenda entre tais grupos só beneficiou os poetas mais novos. Antecipando o período de 60, Herberto Helder conquistara o seu lugar e garantira a sua autonomia.

Nascido no Funchal, em 1930, frequentou o conhecido grupo do Café Gelo. A publicação do primeiro livro O Amor em Visita2 dar-se-ia em 1958, três anos depois lança A Colher na Boca e Poemacto. A partir deste ponto, Herberto Helder construiu uma poética fascinante, dando início à desarticulação radical de toda a tradição da poesia portuguesa.

Embora esteja ligado ao Surrealismo por desígnios geracionais, a progressão da sua obra demonstra que o caminho seguido se distancia gradualmente dos postulados, revelando vias transversais de aprofundamento. Ao afastar-se deste alinhamento processual, o poeta norteia-se pela propulsão metafórica trabalhada com a minúcia da pesquisa e do estilhaçamento estilístico. A dispersão da escrita surrealista é substituída por uma voz encantatória. A fruição textual atinge o equilíbrio, mas o substracto rege-se pelo ritmo turbulento e a opacidade concentrada:

“E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua

estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo

se desfibra - invento para ti a música, a loucura

e o mar.”3

Ciente da polifonia articulada, a gnose poética assume a animalidade concreta e a normalidade animal, secundando-a pela “retórica profunda” que exigia Baudelaire. A “inspiração tumultuosa”4 do poeta deixa envolver-se por um movimento quase orgânico:

“Plantas, bichos, águas cresceram como religião

sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe a força

maternal, e tudo circula entre teu sopro

e teu amor”5

O sistema desta poesia traceja uma órbita ascensional: volume, espaço e tempo são decompostos pela espessura da linguagem. Não existe tempo ou espaço para a criança, a mãe e a mulher, não há formas discerníveis, estão à deriva no não-tempo, tão voláteis como objectos indecifráveis:

“As crianças enlouquecem em coisas de poesia.

Escutai um instante como ficam presas

no alto desse grito, como a eternidade as acolhe

enquanto gritam e gritam.”6

Mãe, criança e linguagem formam uma tríade incestuosa que o poeta representa e traduz numa poesia que fala sobretudo no feminino. A representação nasce envolta no erotismo violento, espelhando o envolvimento entre corpo, espírito e objecto, e moldada na fulgurância platônica de onde esta poesia emerge:

“As mulheres de ofício cantante que a Deus mostram

a boca e o ânus

e a mão vermelha lavrada sobre o sexo”7

A poesia é o sopro divino, a pronúncia da palavra primeva, a suspensão do pneuma universal:

“- como se diz: pneuma

terrífica é a terra e no entanto nada mais do que um pouco:

criar matérias -

e depois, a nossos pés, constelações e os rostos

(…)

caldeia

os artefactos:

ouro que transborda,

e o mundo”8

A sua inegável capacidade de transmutar a matéria verbal projecta a linguagem na dança vertiginosa dos ritmos, absorve os sentidos, as ressonâncias; as cifras do poeta aceleram o movimento que ondeia em direcção à substância visceral da língua. O poeta capta as palavras através da lucidez dolorosa, desestruturando o teor funcional, despertando-lhes o sentido primigênio:

“Que se coma o idioma bárbaro, palpitação da lêveda

substância dos vocábulos:

no prato. Eu devoro. Às vezes electrocutado, uma ígnea

/linha escrita

para dizer o abastecimento de estrelas

em cal escaldando, da poesia”9

Os limites desta poética estão minados, ela torna-se compacta ao acumular a energia do deslocamento metonímico e da gravitação metafórica. Herberto Helder impulsiona o vivo encantamento das palavras, o abalo que a sua poesia provoca é um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já sofreu. Poeta que reescreve sem cessar, é criador/ destruidor de uma gramática peculiaríssima. A transgressão regula a pontuação, os padrões são sujeitos à sua consciente desorganização, o fluxo verbal se alastra animalizando o poema:

“E dentro de mim, rompendo peixes,

uma noite sensível cor de martelos.

esse grito, essa vírgula, esse amor, esse

martelo louco

(…)

Gritando, cor de martelos, em peixes

Com som de rosas:

Castiçal, silveira - e:

Porta porta”10

A irredutibilidade desta poesia converge para a aglutinação total, transgredindo os cânones da tradição e ultrapassando as fronteiras. Poesia decisiva e órfã, a insubmissão de Herberto Helder é única se comparada com a generalidade da literatura de língua portuguesa. Poeta sábio e lúcido, a sua obra faz-se distante das luzes dos acontecimentos, sob a égide da”solidão essencial” proclamada por Blanchot11. Repetiria as palavras de Jean-Pierre Richard ao dizer que a poesia “est aussi le plus souvent travail, souffrance”12. Nada mais correcto para explicar algo deste autor.

No panorama da poesia contemporânea mundial aparecida nas últimas três ou quatro décadas, é difícil encontrar algum paralelo. Herberto Helder não precisa reivindicar um lugar, pois ele esteve sempre preenchido. E, hoje, mais do que nunca, é o momento de reconhecer a exuberância deste enorme poeta genuinamente barroco, constelar.

**

Qual a motivação que leva um autor a dedicar um volume de traduções cujo núcleo é a poesia dos povos ameríndios? Desde O Bebedor Nocturno13, passando pelo livro que se seguiu - As Magias- até Ouolof14, Herberto Helder dedicara particular atenção às vozes genésicas silenciadas pela rasura do tempo e, em alguns casos, pelo gradual desaparecimento dessas expressões.

O interesse inspirou autores distintos, como D. H. Lawrence, Blaise Cendrars, Henri Michaux. Herberto Helder revelou textos originários dos povos aztecas, maias e pigmeus, entre muitos outros. Nos volumes agora publicados aumentou a participação das tribos da Amazónia, na tentativa de prefigurar uma genealogia órfã e fundar uma pré-história poética para si mesmo. O poeta recorre à individuação extrema para “reatar” os laços de parentesco literários com uma reapreensão da literatura, motivada pela expressividade simbólica e mítica das cosmogonias que conhece e admira.

O que está por detrás desta atitude é a relação orgânica com a linguagem, são redes de energias potenciais transitando de um lado para o outro, da natureza ao pensamento. O fio condutor desta transmutação não procura erguer proposições ou equivalências, nem classificar um género de expressão mas relacionar plasticidades genuínas contagiado pela vibração interior dos textos, penetrando assim na medula primeva da linguagem:

“- De dentro de ti saem as flores do canto:

derrama-las sobre os homens, sobre eles as esparzes:

tu és um cantor!

- Fruí do canto, todos vós,

fruí, dançai, entre as flores respira o canto:

e eu, cantor, respiro no meu canto!”15

Neste sentido, ele recupera os ecos perdidos transformando as criações míticas e as fabulações poéticas destes povos num dos pontos cardeais a indicar certas vias da sua poesia. É a experiência-limite invocada sob a projecção de sintaxes-limite; o poeta não se serve dos poemas ameríndios, eles é que falam “mudados” através do poeta.

A função elementar destas vozes descortina uma das portas para penetrar na poesia de Herberto Helder. Encontramos nestes textos correspondências directas com a ordem do mundo poético do autor, estabelecendo-se conexões que foram resgatadas e transfiguradas. A imagem do sopro - o pneuma universal tão importante para a sua poesia - está presente e explica o tráfico literário imposto de forma admirável pelo poeta desde o início do seu percurso, como é o caso do poema do povo zunhi:

“inspirando o seu sopro no calor do meu corpo

incorporo o seu sopro

para que vivas sempre luminosamente”16

Desvenda-se ainda outro aspecto, a fulgurância emblematicamente metaforizada pelo fogo, os trovões e os relâmpagos, aliando-se a vários segmentos da poesia do autor:

“Com o sombrio trovão por cima, vem voando até nós,

com a obscuridade formada pela nuvem negra que está

/sobre a tua cabeça

voando vem até nós”17

O ritmo agitado, a latência amorosa manifestam-se nas imagens do poeta, como no belo poema do povo kwakiutle:

“Cada vez que como, como a dor do teu amor.

Cada vez que tenho sono, sonho com o teu amor.

Cada vez que estou em casa deitado de costas, estou

deitado sobre a dor do teu amor.

Cada vez que ando, ponho o pé sobre a dor do teu

amor”18

O paralelismo parece apontar para uma rede de imagens que se interligam na bifurcação do tempo e do espaço entre um poeta português e os autores anónimos destes textos:

“Não sei se estiveste ausente.

Deito-me contigo, e levanto-me contigo

(…)

Se tremem as arrecadas nas minhas orelhas,

És tu que te moves no meu coração”19

Dizia Lévi-Strauss que “nem todos os mitos são poemas, mas todos os poemas são mitos”, no sentido de que o diálogo com a divindade e os mistérios que a envolvem, para os ameríndios, faz-se através do relacionamento entregue ao prazer, à invocação e aos temores que calcam o seu imaginário amalgamado entre dois mundos, o sagrado e o profano, o sonho e a realidade. Para o poeta Ernesto Cardenal, “a poesia primitiva foi sempre feita com imagens concretas, sem o uso de ideias abstractas”. Tais imagens encontram referenciais activos na poesia, daí a contiguidade existente. Contudo, a aproximação atinge níveis bem explícitos, como a susceptível ressonância - dir-se-ia dantesca - de um poema dos kwakiutle:

“O grito com que hei-de chamar-te será diferente agora:

descerei ao mundo de baixo, meu amor,

e do mundo fundo e escuro gritarei o teu nome,

meu amor, gritarei do fundo do mundo o teu nome”20

Roger Callois afirmou que a rima era uma espécie de “pólen verbal”. Consciente deste princípio, Herberto Helder efectuou nas versões coligidas momentos como o da canção quíchua em que parece ter utilizado como modelo a quadra portuguesa. Há outros exemplos surpreendentes:

“Acabará minha estéril história

que a si própria se liga por dentro:

a vida, o nome, a minha memória,

gravados fundo no esquecimento”21

A enunciação sagrada destes povos regressa, em português, pela mão deste demiurgo de linguagens secretas perdidas no silêncio do tempo e nos desastres da História.

1- Texto publicado como introdução de O Corpo O Luxo A Obra, São Paulo, Iluminuras, 2000, primeira antologia poética de Herberto Helder publicada no Brasil; 2ª ed. 2009; a segunda parte foi publicada no jornal Expresso, como crítica do volume Poemas Ameríndios.

2- In Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.

3- Op. Cit., p. 18

4-A expressão é de Maria Estela Guedes in Herberto Helder - poeta obscuro, Lisboa, Moraes Editores, 1979.

5- Op. Cit, p. 19

6- Idem, p.25

7 Ibidem, p.48

8 Ibidem, p. 138

9 Ibidem, p. 129

10 Ibidem, p. 67

11 Ver capítulos iniciais e apêndices de L’Espace Literaire, Paris, Gallimard, 1963.

12- In Onze Études sur la Poésie Moderne, Paris, Seuil, 1964.

13- Op. Cit., p. 159

14 Ouolof - poemas mudados para português por Herberto Hélder, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.

15 Poemas Ameríndios, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, p. 35

16 Op. Cit., 75

17 Op. Cit. 67

18 Idem, p. 92

19 Ibidem, p. 102

20 Ibidem, p. 73

21 Ibidem, p. 58


segunda-feira, 1 de novembro de 2010


A PALAVRA ABENÇOADA

Creio que há muitos poetas com talento, mas pouquíssimos têm realmente o dom. A originalidade de um autor desta estirpe cria sempre uma profunda impressão, porque está imunizada contra os modismos e arma as suas bases num espaço particular de permanência e universalidade. Daniel Faria publicou várias obras no início dos anos 90 Uma Cidade com Muralha, Oxálida e A Casa dos Ceifeiros , e os dois volumes aqui comentados2. Tudo o que o autor deixou publicado se resume a isto, e não é pouco.

A inscrição póstuma deste poeta tem um significado especial, porque, tendo vivido praticamente alheio ao circuito institucional, além de se ter dedicado à paróquia de Santa Maria de Fornos, em Marco de Canaveses, e aos estudos no Porto, era conhecido por um grupo restrito de leitores. Acresce que geriu a sua poesia de um modo peculiar, liberto da supremacia da ingenuidade que assoberba muito do que se produz hoje. Mantendo-se distante dos condicionamentos, das temáticas frugais, “dos logrogrifos e das logomaquias” de que falara Ernesto Sábato. Face aos seus contemporâneos, Daniel Faria impôs-se silenciosamente com o poder do seu verbo, sem necessitar dos circuitos dos prémios e dos encontros literários para afirmar a sua voz. De facto, aquilo que este poeta publicou em vida bastou para lhe cativar um lugar precioso no panorama da poesia mais recente.

São poucos os poetas que consolidam uma estilística distintiva. A poesia deste autor é, simultaneamente, terna e clássica, violenta e espiritual:

“Encosto-me à morte sem amparo ou sombra

como o grão

abeiro-me da flor que virá e venho

à superfície do teu sonho

Como se acordasse a mão que semeia

No coração lavrado de quem faz a ceifa

Rebento no interior da morte como o trigo”3

Numa passagem de L’Espace Littéraire4, Maurice Blanchot assevera que “o poema está vinculado a uma fala que não se interrompe porque não fala, é(…) O poeta é aquele que ouviu esta fala, que transformou-se no intérprete desta fala e lhe impôs o silêncio ao pronunciá-la”. Há um sentido de posse a libertar-se desta poesia; posse da linguagem autêntica em que cada poema privilegia a distinção da voz, particulariza a expressão, o apelo do verbo quer fixar a sua morada:

“Voz no vento passando entre poeira

Edifício

Árvore noutro poema

Fico à sombra da vide e do esteio no Outono

Enxerto a luz

Em tudo o que nomeio”5

As imagens que percorrem o horizonte desta poesia disseminam-se na recorrência perceptiva do mundo rural, uma escala sugestiva intensifica a sua projecção:

“Muito pouco

Restará

Depois da fome o sabor do pão

Depois da sede o correr da água

O feixe de lenha à cabeça

Da mulher incendiando

O cair da tarde”6

A lírica de Daniel Faria organiza-se por intermédio da religiosidade. Num determinado momento o poeta desata o nó desta relação que eu chamaria “teopoética”, e acaba por ladear a apreensão sugestiva do mundo. Profundamente consciente do seu ofício, ele lê o mundo e interpreta-o segundo a representação ambígua e, às vezes, telúrica:

“Poisa devagar a enxada sobre o ombro

já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas

A lâmina contra o cansaço”7

Enquanto muitos dos seus companheiros de geração estão naquele estágio em que, como diria Malherbe, “resta saber se os frutos corresponderão à promessa das flores”, Daniel Faria surgiu com uma voz madura, com a consciência poética susceptível de confrontar a si mesmo e aos seus pares. Não estou a incorrer em erro ao afirmar que era uma das maiores promessas da jovem poesia portuguesa.

Felizmente, a sua história está só a começar:

“Estou ligeiramente acima do que morre

Nessa encosta onde a palavra é como pão

Um pouco na palma da mão que divide

E não separo como o silêncio em meio do que

/escrevo

(…)

Ando ligeiro acima do que digo

E verto o sangue para dentro das palavras

Ando um pouco acima da transfusão do poema

(…)

Porque ando acima da força a saciar quem vive

E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe”8

1 Homens que são como lugares mal situados, Porto, Fundação Manuel Leão, 1998; Explicação das Árvores e de outros animais, idem; publicado no jornal Expresso.

2 Após a publicação deste texto (01/07/2000), a obra de Daniel Faria ganhou uma enorme notoriedade e foi alvo de reedições sucessivas, que culminou com o volume onde se reuniu a sua produção poética, Poesia-Daniel Faria, Quasi Edições, 2003.

3 Op. Cit., p. 17

4 L’Espace Litteraire, Paris, Gallimard, 1985.

5 Op. Cit., p.18.

6 Idem, p. 90.

7 Ibidem, p. 77.

8 Ibidem, p. 15.